CONCERTO: “Folia Nova”
Sete Lágrimas
Com | Filipe Faria (voz, viola de mão 4 ordens, bandurra descante, percussão e direcção artística), Sérgio Peixoto (voz e direcção artística), Pedro Castro (flautas), Tiago Matias (guitarra barroca, guitarra romântica e tiorba), João Hasselberg (contrabaixo)
CásterAntiqua - Festival de Música Antiga de Ovar
Centro de Arte de Ovar
15 Mar 2025 | sab | 21:30
“E toda a gente da cidade foi posta com muita brevidade em danças e folias, com infindas tochas na praça e no Terreiro dos Paços, e por todas as ruas principaes, e tanta gente honrada e nobre, e assi a do povo, que não cabia, nem se viu nunca tanto alvoroço e alegria, e muitos velhos e velhas honradas com sobejo prazer foram juntos cantar e bailar diante de El-Rei e a Rainha, cousa de que suas edades os bem escusavam.”
Garcia de Resende, in Chronica de ‘L Rei D. João II
A folia foi um dos fenómenos mais notáveis da história da música. Com raízes campestres ligadas a rituais de fertilidade, esta melodia musical, que se estende à dança, ao texto e à animação, remonta a finais do século XV e abraça vários públicos, ocorrendo tanto em ajuntamentos populares como nas festas da corte. A página La Folia – A Musical Cathedral, que procede a um inventário de folias, conta cerca de cento e cinquenta compositores que em mais de três séculos conceberam inúmeras variações brilhantes, de Jean Baptiste Lully e Marin Marais, a Corelli, Vivaldi, Bach e Beethoven, ou mesmo Berlioz, Liszt e Rachmaninov. Gil Vicente foi o primeiro autor a mencionar a folia, caracterizando-a, no seu “Auto da Sibila Cassandra”, de 1511, como uma dança de pastores. Já Sebastián de Covarrubias, em pleno reinado dos Filipes, definia-a como “uma certa dança portuguesa, muito barulhenta (…), e é tão grande o ruído e o som tão apressado, que parece estar uns e outros sem juízo”. Apesar deste seu carácter “louco” e da sua raiz popular, a verdade é que a folia conseguiu conquistar a corte, o que concorreu tanto para o seu sucesso como para a sua longevidade.
Nesta sua “Folia Nova”, nome do concerto que preencheu a segunda noite do CásterAntiqua, o Sete Lágrimas voltou a partir do novo para o tempo, levando o público numa viagem pelo vasto território da língua, na sua métrica, ritmos e harmonias. Como se de uma levitação entre mundos se tratasse, esta reinterpretação da Música Antiga resgata a poesia portuguesa e as suas palavras, trazendo-as para o presente em analepses de magia, reinventando-as em novos sons e novas melodias. Filipe Faria e Sérgio Peixoto escrevem os doze novos vilancicos que compõem “Folia Nova” como estações cronográficas da intemporalidade, partindo da “folia” e do seu tradicionalismo harmónico e rítmico para um novo universo conceptual, rico em novas linguagens e diálogos criativos. A música erudita abraça a música popular, o antigo e o contemporâneo dão-se as mãos e é como se a secular diáspora portuguesa dos Descobrimentos e o eixo latino mediterrânico se convertessem em som graças à fiel interpretação dos cânones performativos da Música Antiga e à incorporação de elementos definidores da música tradicional ou do jazz.
O concerto foi, todo ele, um manancial de festa e folia em torno da língua, numa homenagem a alguns dos nossos poetas mais representativos, do já referido Gil Vicente a Pêro de Andrade Caminha, de João Roiz de Castel-Branco a Bernardim Ribeiro e Luis Vaz de Camões. Bernardim Ribeiro de quem se escutou, a abrir o concerto, “Nunca foy mal nenhum moor”, apenas com Filipe Faria em palco e que nos trouxe, na sua voz lindíssima, a certeza de uma noite inesquecível. Todo o restante alinhamento viria a confirmá-lo, a atenção do público presa num apontamento solístico de maior relevância, num verso declamado com graça e engenho, na forma como umas escovas se transformam em instrumentos de percussão ou como o assobio pode ser arte e encanto, ou ainda no som grave do contrabaixo, instrumento estranho à Música Antiga mas que se integra perfeitamente e se revela precioso. Na alma fica a interpretação de “Cantiga sua, partindo-se”, de João Roiz de Castel-Branco e, pela mímica e gestualidade, “Dicem que me case yo”, de Gil Vicente. Também o enérgico e muito belo “El passamezzo antiguo”, de Diego Ortiz, com honras de “encore”, e ainda “Fandango”, escrito e interpretado a solo por Tiago Matias, mais um momento perfeito neste serão magnífico.
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