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terça-feira, 14 de janeiro de 2025

LIVRO: "Manhã"



LIVRO: “Manhã”,
de Adília Lopes
Ed. Assírio & Alvim, Fevereiro de 2015 (1ª reimpressão em Março de 2022)


“Tive uma bisavó que deu tantos beijinhos a uma imagem do Menino Jesus que o Menino Jesus sumiu. É uma placa com a reprodução de um quadro de Correggio, Nossa Senhora de mãos inclinadas a adorar o Menino nas palhinhas. Agora Nossa Senhora parece que está a aquecer as mãos numa fogueira. Não quero ser irreverente.”

Não fora a artista plástica Rosa Bela Cruz ter incluído Adília Lopes no conjunto de cinco extraordinárias mulheres escritoras que decidiu pintar, fazendo delas tema principal da sua exposição intitulada “Minha Senhora de Mim (De Quê’)”, e talvez não me tivesse cruzado (ainda) com a poetisa entretanto falecida. Meramente casual - era o único livro da autora na curta oferta de Poesia na livraria visitada -, a escolha de “Manhã” viria a revelar-se “um tiro certeiro” pelo seu tom marcadamente autobiográfico: As memórias da infância sempre presentes, o olhar simples, quase desprendido, sobre os pequenos-nadas do quotidiano, uma subtil ironia e um permanente toque de humor entre o benigno e o corrosivo. Sem nada conhecer da obra de Adília Lopes - a Wikipedia dá conta de cerca de quarenta títulos publicados, entre poesia e crónica -, quase me atrevo a recomendar este livro àqueles que, tal como eu, pretendem desbravar o universo da autora, pelo que permite entrever da pessoa e da sua escrita (afinal talvez nem permita entrever tanto assim, ou não seja o poeta “um fingidor”).

“Olhó Rajá fresquinho. Olhá batatinha frita. A praia do Estoril há 50 anos. Nunca gostei de batatas fritas nem de gelados. Mas gosto de escrever estas coisas.” Uma certa nota de desconcerto irrompe dos poemas seleccionados por Adília Lopes para figurar neste livro. Como um post-it onde se inscreve de forma breve um lembrete que se vai colar na porta do frigorífico, assim são as recordações que a autora decide partilhar, dando nelas conta do seu viver e sentir, do que foi e do que é, do seu “gosto de gostar de gostar”. Mas o tom só é leve na aparência, exigindo-se do leitor o labor de ir ao fundo do poema - “Escrever um poema / escavar uma toca”. A casa, a escola, os brinquedos, as palavras caras, os óculos, os diabetes, as cidades, a praia, a tia Sara, borboletas eléctricas, dansar (assim mesmo, com “s”), a geometria descritiva, a mecânica quântica, os tempos, as modas, os mitos, as leituras, os prémios, os palavrões, são como fios com as quais a escritora tece o manto de uma vida onde os nomes e as coisas ocupam um lugar especial.

“No meu bolo de aniversário, mais do que das velas, gostava das pralines. Esferazinhas prateadas sobre a neve, sobre a cobertura de claras em castelo e açúcar”. É assim a poesia de Adília Lopes, entre os dias de Verão passados com a família numa pensão em Colares e as histórias de língua da avó antes de adormecer, um enfermeiro que vinha a casa dar injecções e se chamava Afonso e a constatação de que estudar e ler é quase o melhor que há. Um filme de Manoel de Oliveira abre histórias de namoros de janela, casamentos falhados e ceguinhos que passam na rua a tocar Madalena Iglesias. Uns escritos de Agustina sobre Natália Correia são pretexto para falar dos anos 60, da cor do Caladryl e da Petula Clark. O Manneken-Pis, o menino a fazer chichi na rua principal de Bruxelas, remete para as ruas de Lisboa, Penamacor ou Sarajevo, para o horror à guerra. Uma “poesia da vida menor”, classificada como tal pela autora, tornada grande pelo poder da palavra, pela sua capacidade em associar aos acontecimentos banais os sentimentos mais profundos, numa demonstração do poder salvífico da poesia.

1 comentário:

  1. Ainda não tenho nenhum livro da Adília Lopes, mas gosto do que tenho lido. A sua simplicidade encanta-me e o que é a poesia senão esse encantamento pelo que nos rodeia, esse arrepio, essa surpresa pelo que não é abertamente dito e que, muitas vezes, nos choca?? Há dias, um poeta que admiro, João Luís Barreto Guimarães definiu bem a poesia, num final de telejornal da RTP1. Continuarei a descobrir poemas, poetas e a poesia.

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