LIVRO: “Diário Incontínuo”,
de Mário Cláudio
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Julho de 2024
“Porto, Terça-feira, 13 de Abril de 2010
O José Carlos Vasconcelos pede-me alguns fragmentos deste diário para publicar no seu Jornal de Letras, e vejo-me em dificuldades porque ora os encontro demasiado íntimos, ora demasiado anódinos, ora demasiado perigosos.”
Íntimas, anódinas, perigosas! Não encontro melhor definição para o conjunto de entradas que dão forma, entre os dias 1 de Janeiro de 1958 e 10 de Setembro de 2019, àquilo que Mário Cláudio designa por “diário incontínuo”. Nele, o escritor revela-se por inteiro, num percurso de vida onde cabem amores e embirrações, conquistas e frustrações, decisões adiadas e murros na mesa, nada assim tão distante das riquezas e misérias que condimentam o quotidiano de cada um de nós. Apenas com uma diferença, bem avultada, por sinal: Os actores que com Mário Claúdio contracenam no palco da vida são figuras maiores das artes e das letras deste país – de Júlio Resende, Manuel Alegre, José Rodrigues e Eugénio de Andrade, a Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, Manuel António Pina e Maria do Rosário Pedreira, entre tantos, tantos outros -, também eles com as suas grandezas e misérias. Gente que, as mais das vezes, oferece entendimento, mas se mostra escassa no tocante a Humanidade, o que leva o autor a confessar ser infinito “o espectro das pessoas que me interessam, como infinito é o daqueles que aborreço”.
Entre manhãs claríssimas e nítidas, tardes de chuva e noites a ouvir a mastigação dos bichos da madeira, vamos acompanhando Mário Cláudio no que um homem pode ter, em partes iguais, de selvagem, apaixonado e cívico. É divertida a forma como, a partir de dada altura, assume prosseguir ondulantemente com uma dieta no horizonte, enquanto peregrina pelo Solar do Moinho de Vento, o Tripeiro, a Nanda, o Dom Tonho, o Pap’Açorda ou a Cozinha da Maria Eugénia. Entre os momentos dedicados à escrita de obras tão importantes como “Peregrinação de Barnabé das Índias”, “Ursamaior”, “Camilo Broca” ou “Retrato de Rapaz” e as viagens - o pesadelo de poeira e ferros torcidos de Manchester, as hordas de turistas de Veneza, Frankfurt e a incontornável Feira do Livro -, tempo para olhar o Douro em Entre-os-Rios, contemplar a Nazaré vista do Sítio, lamentar a “parda e seca” charneca alentejana ou dar um passeio junto à praia em Vila do Conde. Percebe-se, como o autor afirma, “uma impossibilidade de se circunscrever à obrigação”. Tudo é sugestão e atractivo, visões de que o próprio Mário Cláudio é o centro.
Para quem, como eu, aprecie biografias, um livro como “Diário Incontínuo” é uma fonte inesgotável de prazer e fascínio. A grande política faz-se ausente, mas avultam sentimentos fortes numa sonata de Kodaly, num prelúdio de Chopin ou na “Sinfonia do Mar” de Vaughan Williams. A explosão do génio de Turner torna ainda maior o vazio de duas exposições em Serralves. Uma comunidade de leitores pode ser o melhor antídoto à outorga de um prémio literário e uma tristeza revoltada faz-se presente face à inexistência de uma pluralidade de vozes críticas no seio dos escritores portugueses. Há muitos livros - sempre! - e muitos museus, a goiabada da tia Justina e as andorinhas que regressam aos ninhos à entrada da casa, um cilindro que rebenta “mas ninguém se afoga” e o protesto em fúria das hemorróides contra a mostarda japonesa, um ataque traiçoeiro do Jasão e o esquecimento de fechar a braguilha. Há tuias e juníperos, narcisos azuis, japoneiras, agapantos, a magnólia dos Congregados. E há, claro, Venade e a verdejante paisagem em redor, a Dona Maria Alice, o Joaquim, o Mike, o Rui e o Puck, a casa por arrumar e as obras por fazer, o vizinho Silvério com as suas dádivas habituais de feijão e ovos, a visita do compasso pascal, a adopção de dois gatinhos de mama, a casa sempre aberta para receber os amigos. Ide ler. Este diário é pão!
Sem comentários:
Enviar um comentário