LIVRO: “Visitar Amigos e Outros Contos”,
de Luísa Costa Gomes
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Setembro de 2024
“Que é do Homem do Taco? Não estava na altura de entrar em cena? Não se lhe deu a deixa? Percebe-se que o personagem meteu outra obra no interim. É como se faltasse o actor ao abrir do pano. Eu quero saber quando virá, ao certo. Mais valia querer saber a que horas se dará o fim do mundo. Há um primeiro pequeno desentendimento com o responsável da obra que não aceita ser responsável pelos operários que ele mesmo contrata. É o momento em que a História se decide por uma ou outra narrativa. Quem manda na verdade? Se o Homem do Taco não aparece, de quem é a culpa? Minha, que contratei quem o contratou, ou de quem o contratou?”
Com o ano a chegar ao fim, cai-me no regaço este “Visitar Amigos e Outros Contos”, conjunto de treze textos que se abrem para um quotidiano com tanto de risonho e promissor como de castrador e mesquinho. Com um notável sentido do ritmo, Luísa Costa Gomes convida o leitor a olhar em volta e a atentar naquilo que, directa ou indirectamente, o afecta, seja dentro de portas, seja no espaço longínquo. Objectiva na definição dos personagens e na forma como os distribui pelo espaço em volta, rigorosa nas marcações como se de uma peça de teatro se tratasse, a autora mete verdades e consequências no mesmo saco, levando o leitor ao encontro de si e daqueles que o rodeiam. Do social ao indissociável, os amigos fazem-se presentes no virar de cada página, mostrando-se naquilo que são, delicados e sensíveis uns, oportunistas e sacanas outros. Face a face com cada um deles, somos o que somos e o que não somos, numa sequência de malabarismos e de golpes de rins que nos endurecem e enrugam a couraça e nos tornam mais conscientes de nós, mas também mais impacientes e rabugentos, mais velhos.
É de renovação que nos fala “A Ditadura do Proletariado”, o conto que abre o livro. O gosto pela metáfora e pelos trocadilhos revela-se logo no título e estende-se pelas páginas seguintes, revelando uma autora em grande forma, exímia na arte de alinhavar as palavras que vão do sonho ao pesadelo, segura na descrição das dores de cabeça que quaisquer obras dentro de casa implicam, delineando com saudável humor as relações entre quem contrata (a burguesia) e quem é contratado (o proletariado) e pontuando de ironia a deriva entre a escolha das loiças sanitárias e um novo buraco que se abre no tecto. Fazendo da elegância da escrita e da verosimilhança das situações elos comuns ao conjunto de contos, o livro leva-nos ao encontro dos amigos, dos que se mostram reféns dos impulsos primários de um gato aos que se insinuam com a promessa de acender uma boa lareira, dos que fizeram fortuna e se debatem no momento de lavrar o testamento aos que transformam um simples telefonema numa estopada à volta dos dilemas amorosos de Kierkegaard.
Na linha sempre delicada que separa a realidade da ficção, Luísa Costa Gomes revela um pouco de si, deixando adivinhar-se em certezas e reservas, alegrias e medos, conquistas e frustrações. Ternos ou duros, o seus contos mostram-na no andar distraído, na facilidade em alterar os planos, na rotina do lanche com as amigas, na embirração com gatos. O tempo tanto pode ser o de agora, numa pastelaria na Guia ou numa praça em Berlim, como o de outrora, num combóio a vapor que rasga a noite na Cabreira ou no isolamento de uma cela em Caxias, que o olhar da autora permanece o mesmo, de lucidez e liberdade feito. Nesse olhar segue o leitor ao encontro de si mesmo, perscrutante e inquieto, medindo o que de comum se perfila no virar de cada página, revendo condutas, definindo prioridades, pesando fragilidades, visitando amigos. Amigos de agora e de sempre, amigos que foram, amigos que o são, amigos que tornam o seu dia a dia mais leve ou o carregam de dilemas, o suavizam ou o complicam. Amigos que são “o nosso bolo de natal” ou, simplesmente, a fava desse mesmo bolo.
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