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segunda-feira, 24 de junho de 2024

CINEMA: "Soma das Partes"



CINEMA: “Soma das Partes”
Realização | Edgar Ferreira
Argumento | Edgar Ferreira, Andrea Lupi
Fotografia | João Biscaia
Montagem | Steven Nascimento, Edgar Ferreira
Interpretação | Maria João Pires, Evgeny Kissin, Rui Vieira Nery, Lorenzo Viotti, Muhai Tang, Lawrence Foster, Hannu Lintu, Joana Carneiro, Inês Thomas Almeida, Varoujan Bartikian, Levi Condinho, Teresa Nunes da Ponte, Vera Dias, Maria José Falcão, Alfredo Flores, António Gonçalves, Risto Nieminen, Alejandro Oliva, Arlindo Santos, Leonor Braga Santos, Andrew Swinnerton, Luís Tinoco, Manuel Teixeira
Produção | Mafalda Almeida, André Vieira
Portugal | 2023 | Documentário | 66 Minutos | Maiores de 12 anos
Vida Ovar Castello Lopes
23 Jun 2024 | dom | 13:10


“Uma Orquestra é o nível mais elevado do trabalho em conjunto. É sobre como se estabelece a comunicação através das ideias, das harmonias. Como se almeja fazer melhor escutando o outro. Uma Orquestra é um símbolo de uma sociedade que tem a noção que saber ouvir é o caminho para sermos melhores.”
Hannu Lintu, Maestro Titular da Orquestra Gulbenkian

Género considerado “pouco comercial”, o documentário não é presença assídua nas salas de cinema. Daí que seja de saudar a estreia, em dezoito salas de todo o país, de “Soma das Partes”, uma obra que resume seis décadas de vida da Orquestra Gulbenkian, entre os anos de 1962 e 2022. Com recurso a imagens de arquivo inéditas e entrevistas de músicos, maestros e solistas internacionais, o filme conta a história de uma orquestra que contribuiu de forma determinante para o enriquecimento do panorama musical português, gravou mais de setenta trabalhos discográficos e actuou ao lado de muitos dos maiores intérpretes no mundo da música. Com os musicólogos Rui Vieira Nery e Inês Thomas de Almeida a servirem de “pivôs” de uma história de sobrevivência, genialidade e intemporalidade, o documentário divide-se em seis partes - cada uma das quais correspondendo a uma década de vida da orquestra - e integra um conjunto de preciosos testemunhos de quem vive e sente a Gulbenkian como algo de muito íntimo, dos maestros aos coordenadores de projecto, dos músicos aos próprios espectadores.

A Orquestra Gulbenkian, como o Coro Gulbenkian, o saudoso Ballet Gulbenkian ou o Serviço de Música da Fundação, são obra de uma mulher visionária que foi Madalena Azeredo Perdigão. Foi o seu espírito de missão extraordinário e um apurado sentido do que fazia falta à vida musical portuguesa que a levou a pensar um projecto que completasse o ciclo da modernidade e, num momento posterior, lançasse as sementes da própria contestação dessa modernidade. À falta de uma orquestra, de um coro e de um espaço próprio, respondeu Madalena Perdigão com uma primeira tentativa, em 1959, de criação de uma Orquestra. Recusado, o projecto foi reformulado e viria a vingar três anos mais tarde, com a criação de uma Orquestra de Câmera formada por treze elementos - “quatro primeiros violinos, três segundos, duas violas, dois violoncelos, um contrabaixo e o cravo”. Integrando músicos portugueses e estrangeiros, a Orquestra teve na abordagem ao repertório barroco uma das suas grandes forças iniciais. Estava alcançado o objectivo da criação de novos públicos e era tempo de ampliar o projecto.

Com os maiores nomes da música erudita mundial a apresentarem-se em todo o país a preços extremamente módicos, as treze edições dos Festivais Gulbenkian foram uma das mais democráticas medidas algum dia tomadas no período do Estado Novo para fazer chegar a música ao contacto do público. Simultaneamente, a Orquestra Gulbenkian inicia a sua carreira internacional, com Maria João Pires e os concertos para piano de Mozart a mostrar-se e a mostrar a Orquestra ao público europeu. Das digressões pelo mundo inteiro, às gravações em plataformas de grande prestígio - o “Requiem de Mozart”, com direcção de Michel Corboz, é emblemático deste período -, o reconhecimento da qualidade e versatilidade da Orquestra não cessa de crescer. Entretanto, chegam ao fim os Festivais Gulbenkian e a atenção volta-se para a Orquestra e para a sua ampliação com base em critérios de qualidade. Com a Revolução de Abril, o “poder” de Madalena Perdigão é posto em causa, com ataques violentos a surgirem na imprensa escrita. Para evitar que a pessoa e a instituição se pudessem confundir, Madalena Perdigão demite-se em 28 de Maio de 1974.

O documentário prossegue e o interesse do espectador vai em crescendo. Percebe-se a estrutura sólida do argumento e a forma como o realizador segura o filme com uma montagem extraordinariamente dinâmica. É artística a sua forma de contar uma história que ganha, a cada volta do tempo, nova emoção e fascínio. Os testemunhos de Maria João Pires, Alfredo Flores, Leonor Braga Santos e outros, vão num sentido único: “Não podemos só tocar as notas, temos que fazer música”. Alejandro Oliva diz: “Uma Orquestra é um grupo de músicos - se forem muito bons, ainda é melhor - que tocam juntos. Isso é uma Orquestra. Não são sessenta músicos no palco, são sessenta músicos que partilham a sua vida. Isso é uma Orquestra”. A imagem acompanha a palavra. Como um trabalho de Orquestra, fala-se a uma só voz, aqui residindo, porventura, o grande mérito de Edgar Ferreira, ao interpretar o sentimento de unidade e cumplicidade vivido no seio da Orquestra, conseguindo devolvê-lo na forma de filme. Lawrence Foster, Muhai Tang, Joana Carneiro, Lorenzo Viotti ou Hannu Lintu, maestros, partilham a força das suas visões, tal como Evgeni Kissin, Varoujan Bartikian, Andrew Swinnerton, Arlindo Santos ou Manuel Teixeira, músicos.

A parte que fecha o documentário é a parte da afirmação, da Orquestra como “o meu primeiro amor, aquele que nunca se esquece”. Mas também aquela que se abre ao tempo presente, se mostra nas suas inquietações, e se interroga: “O que podemos fazer para continuarmos a atrair as pessoas? Por que motivo irei dispensar uma boa parte do meu tempo a preparar-me de forma adequada, apanhar um taxi ou o metro e passar duas horas numa sala de concertos?”. Há ainda essa constatação lapidar de Rui Vieira Nery e que me leva a nunca mais olhar um concerto da mesma forma: “Estes músicos estão a dar qualquer coisa de precioso. Cada concerto é menos um concerto que irão dar na sua carreira. Cada concerto é um tempo que eles queimaram para mim. Isto tem um valor extraordinário, não é um disco que se põe e que automaticamente toca as vezes que quisermos. É um percurso de vida destes artistas que, desde crianças, se dedicaram a 100% a esta arte, como uma missão, como uma paixão, e que em cada momento estão a queimar um bocadinho do pavio da vela para mim.” Bravo!

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