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sexta-feira, 26 de maio de 2023

LIVRO: "o meu corpo humano"



LIVRO: “o meu corpo humano”,
de Maria do Rosário Pedreira
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Abril de 2022


“ (…) porque as jóias e as pratas nada valem
se comparadas com a suprema relíquia:
uma caixinha que cabe na concha da
mão, onde repousam, como pérolas
autênticas, todos os dentes de leite

que a fada, afinal, nunca veio buscar.”

No seu extraordinário blogue – “Horas Extraordinárias”, afinal “as horas que passamos a ler” –, Maria do Rosário Pedreira abre uma excepção e fala de si, ou, para ser mais preciso, do seu novo livro de poesia: “o meu corpo humano (em minúsculas, porque eu só pequena)”, no qual “cada poema tem o nome de uma parte do corpo ou de um órgão (braço, cabeça, ouvidos, sangue, carne, rins...) ou várias (cabeça, tronco e membros, por exemplo, ou anca, coxa, perna e pé)”. E acrescenta: “Porque o corpo é frágil e vulnerável, mas também humano no sentido da compaixão, os textos falam de sofrimento próprio e alheio, e do que o tempo faz a um corpo que tem tempo de ver-se ao espelho, e do que a guerra pode fazer ao corpo de uma criança e ao de um adulto.” Fossem as coisas assim tão simples e estaria feita a apresentação do livro. Só que não o são. Há em “o meu corpo humano” uma profundidade que esmaga, uma riqueza de imagens, ideias e emoções que deixa o leitor sem fôlego, um subtil toque de ironia que traz aos lábios um sorriso, uma humanidade tão grande que tudo e todos abraça. Assim, não há como não ir ao fundo do corpo. Do meu corpo humano.

A folha em branco é um espelho em frente ao qual o poeta se despe e se descobre. Aí inscreve, uma a uma, as muitas partes do seu corpo, como quem delas toma verdadeira consciência. Corpo e alma ligados, o rigor é de anatomista. O poema é músculo, mas também é nervo. É carne, mas é também espírito. São muitas as feridas que sangram e nas quais crava o poeta fundo os dedos. A dor atinge o limiar do suportável, o olhar apaga-se. Há uma perna roxa que se esconde no resguardo da saia, uma ferida por sarar na meia grossa e tostões contados na palma da mão, porque pomada é igual a menos pão na mesa. Há uma ratazana que come, descarada, a orelha de um soldado nas trincheiras. No mar segura-se a fome com as mãos todas. Dizem que a doença nova não chega às crianças, mas a morte tem de comer todos os dias. Mói-se o juízo, calam-se as dores, rompem-se as lágrimas, amarrota-se o corpo, o estômago vazio ecoa, são de estimação os calos que se (des)cuidam. Veste-se o sangue de gargalhadas, inflam de vento as veias, cansam-se os olhos de chamas e de sangue, instala-se o bolor nas pregas de uma vida. Escuta-se o bater intermitente do coração: gosto, não gosto.

Património material e imaterial da Literatura, assim declaro, desde já, “o meu corpo humano”. Nos sessenta-poemas-mais-um que o compõem, canta-se a vida e todas as vidas. No que têm de mais belo, extraordinário e tocante, mas também no que abrigam de injusto, imoral e indecoroso. Num gesto, num olhar, numa carícia, louva-se a alegria, a amizade, o amor. Palavras lidas, lá longe, trazem com elas um cheiro a pão e a casa. Quer-se demais o que já não se tem e a testa enruga-se como um sulco na terra. A morte ronda o poema, impõe-se sem vírgulas. Não traz com ela finais felizes, quando muito um sorriso, as memórias que afloram doces para logo se cobrirem de sombras. O poeta mostra e mostra-se. O leitor olha, vê e repara. Repara-se. Tal como o poeta, descobre-se por fora e por dentro. Encontra-se. Num olhar calmo como num sobrolho franzido. No luto que se faz como no que mais logo se desmancha, entre lágrimas e memórias que fazem rir. Nos corpos que se entregam ao amor como num pulso cortado. Não mora aqui a redenção e o tempo, esse, não se detém. Com a alma arranhada, vive-se na esperança de ser desdentado o lobo que uiva lá fora pela nossa carne.

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