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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

LIVRO: "Mazagran - Recordações & Outras Fantasias"



LIVRO: “Mazagran – Recordações & Outras Fantasias”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Quetzal Editores, Outubro de 2012


“Se a Holanda me transformou? Pouca coisa. Na medida em que posso dizer que me conheço, as virtudes e defeitos maiores que carrego hoje são os que já tinha na infância. Mas para nela poder guardar um relativo equilíbrio psíquico e social, a minha pátria adoptiva como que me obrigou a criar um segundo eu. O que, com o correr do tempo, mostrou ser tanto calamidade como benesse, pois só raras vezes o português inato e o holandês assumido coexistem pacificamente em mim. E se é facto que o estado corrente de ambos nem todos os dias é de guerra, as oposições entre eles são bem mais frequentes que as harmonias.”

Em 1972, Rentes de Carvalho publicou “Com os Holandeses”. Para além da evidência autobiográfica da sua prosa, nele o autor abordava temas tão distintos como a organização do trabalho, as relações familiares, as peculiaridades culinárias, a tecnologia de ponta ou a revolução sexual, realçando o quanto a religião, a política e o dinheiro são a trindade das paixões dos holandeses. Quarenta anos depois, voltou a pegar nestes assuntos, daí resultando “Mazagran – Recordações & Outras Fantasias”, visão revista e actiualizada da Holanda e dos holandeses numa altura em que, aos 82 anos, começou a ponderar muito seriamente o regresso definitivo à terra que o viu nascer, Estevais, no concelho de Mogadouro.

Ao longo de mais de uma centena de crónicas, muitas delas “disfarçadas” de cartas enviadas a amigos e conhecidos, J. Rentes de Carvalho dá mostras de um olhar sempre arguto e de um enorme espírito combativo quando de “desancar o quotidiano” se trata. Leia-se o último parágrafo do livro e logo se perceberá que Deus tomou em boa conta as preces do autor, dando-lhe “raivas” em doses generosas e mantendo nele viva a capacidade de se enfurecer, de continuar a chamar “os bois pelos nomes”, a criticar sem medo, a rir de si próprio. Sobretudo, a livrá-lo das aceitações que crescem com a idade. O escritor não se fez rogado e tomou o dom à letra, alinhavando um conjunto de ideias que, se por um lado elucidam e confortam, por outro entristecem e irritam, “contaminadas” por um espírito sagaz mas resistente à mudança e assumidamente casmurro.

As grandes coisas holandesas – do esplendido queijo ao génio de Van Gogh, da luta contra o mar à segurança dos seus bancos e à variedade das suas flores – são aqui “pesadas” com a moda do golfe, a simpatia pelos Sandinistas, as romarias a Praga, os desportos de Inverno ou esse estranho hábito de “beber vinho depois de, com café e conhaque, dar por concluído o jantar”. Saltitando entre aquilo que o atrai e as suas maiores aversões, Rentes de Carvalho tropeça com frequência nos seus ódios de estimação, reafirmando ideias feitas e pouco contribuindo para desmistificar a ideia do holandês “taciturno e falso, calçado de tamancos e reforçando com paciência os seus diques”. As crónicas mais interessantes acabam por ser aquelas onde se evocam Portugal e os portugueses, mas isto sou eu a dizê-lo. O mais do resto é, socorrendo-me do título de uma das suas crónicas, “conversa de chacha”.

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