LIVRO: “Filho da Mãe”,
de Hugo Gonçalves
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Maio de
2019
“No testamento não há heranças ou
revelações. Mas, como suspeitava, esse tornou-se o pretexto para
iniciar a viagem. (…) Tinha de perseguir tudo o que me pudesse
desprender do puxão gravitacional que era a ausência da minha mãe
– não apenas a doença, a morte ou o luto, mas a minha mãe
inteira, apagada de uma só vez.”
No ensejo de recuperar as memórias
da mãe falecida há três décadas e, através delas, perceber as
errâncias da vida e o adulto em que se tornou, é ao interior do
“eu” a viagem que Hugo Gonçalves empreende neste seu “Filho da
Mãe”. Revisitando lugares, refazendo trajectos, reconstruindo
momentos e recuperando, nas recordações dos outros, as suas
próprias recordações, o autor oferece-nos um relato íntimo e
sentido dum tempo que, sendo de inquietação e dúvida, é, ao mesmo
tempo, de apaziguamento e aceitação. Um tempo no qual testemunhos
da mãe como “o casaco de peles, os desenhos do hospital ou as
cassetes” são dados como irremediavelmente perdidos, cedendo lugar
à memória, a “essa coisa humana – essa coisa assombrosa – de
podermos amar aquilo que a morte tocou.”
Pelo seu carácter profundamente
autobiográfico, pelo assunto delicado que aborda e pela forma
despojada como se apresenta, “Filho da Mãe” coloca-se a si mesmo
o enorme desafio de se oferecer ao leitor numa história pungente e
emocionalmente dolorosa, sem que este sinta o desconforto da
intromissão ou o embaraço do despudor. A voz correcta do autor,
porém, apresta-se a dissipar quaisquer dúvidas nesta matéria,
rejeitando a facilidade e o exibicionismo desde as primeiras linhas e
mostrando o livro naquilo que ele verdadeiramente é: Um exercício
de gratidão e um acto de amor.
Ao percorrer a genealogia da família,
agitando o lodo da memória na tentativa de perceber o que vem ao de cima,
Hugo Gonçalves não se limita a abrigar a história de um menino de
oito anos que perdeu a mãe, lançando igualmente um olhar sobre as
pessoas que o rodearam e por tudo o que passaram, provando que a dor
é de todos e de cada um. Ao expor-se e, ao mesmo tempo, expor
alguém removido do evento mais definidor da sua vida, adivinham-se
as interrogações e angústias do autor, mas percebe-se a intenção,
catártica e redentora, de não deixar nada por dizer. Longe de ser
um ajuste de contas com a vida, “Filho da Mãe” é sobretudo um
reencontro, de Hugo Gonçalves com os outros e consigo mesmo. Que
disso quisesse deixar testemunho em forma de livro é algo pelo qual
devemos estar gratos. Assim derramada, sobre a obscuridade do luto, a
luz deste livro é um acto de coragem, uma celebração do amor e um hino à vida.
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