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sábado, 28 de dezembro de 2019

LIVRO: "Filho da Mãe"



LIVRO: “Filho da Mãe”,
de Hugo Gonçalves
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Maio de 2019


“No testamento não há heranças ou revelações. Mas, como suspeitava, esse tornou-se o pretexto para iniciar a viagem. (…) Tinha de perseguir tudo o que me pudesse desprender do puxão gravitacional que era a ausência da minha mãe – não apenas a doença, a morte ou o luto, mas a minha mãe inteira, apagada de uma só vez.”

No ensejo de recuperar as memórias da mãe falecida há três décadas e, através delas, perceber as errâncias da vida e o adulto em que se tornou, é ao interior do “eu” a viagem que Hugo Gonçalves empreende neste seu “Filho da Mãe”. Revisitando lugares, refazendo trajectos, reconstruindo momentos e recuperando, nas recordações dos outros, as suas próprias recordações, o autor oferece-nos um relato íntimo e sentido dum tempo que, sendo de inquietação e dúvida, é, ao mesmo tempo, de apaziguamento e aceitação. Um tempo no qual testemunhos da mãe como “o casaco de peles, os desenhos do hospital ou as cassetes” são dados como irremediavelmente perdidos, cedendo lugar à memória, a “essa coisa humana – essa coisa assombrosa – de podermos amar aquilo que a morte tocou.”

Pelo seu carácter profundamente autobiográfico, pelo assunto delicado que aborda e pela forma despojada como se apresenta, “Filho da Mãe” coloca-se a si mesmo o enorme desafio de se oferecer ao leitor numa história pungente e emocionalmente dolorosa, sem que este sinta o desconforto da intromissão ou o embaraço do despudor. A voz correcta do autor, porém, apresta-se a dissipar quaisquer dúvidas nesta matéria, rejeitando a facilidade e o exibicionismo desde as primeiras linhas e mostrando o livro naquilo que ele verdadeiramente é: Um exercício de gratidão e um acto de amor.

Ao percorrer a genealogia da família, agitando o lodo da memória na tentativa de perceber o que vem ao de cima, Hugo Gonçalves não se limita a abrigar a história de um menino de oito anos que perdeu a mãe, lançando igualmente um olhar sobre as pessoas que o rodearam e por tudo o que passaram, provando que a dor é de todos e de cada um. Ao expor-se e, ao mesmo tempo, expor alguém removido do evento mais definidor da sua vida, adivinham-se as interrogações e angústias do autor, mas percebe-se a intenção, catártica e redentora, de não deixar nada por dizer. Longe de ser um ajuste de contas com a vida, “Filho da Mãe” é sobretudo um reencontro, de Hugo Gonçalves com os outros e consigo mesmo. Que disso quisesse deixar testemunho em forma de livro é algo pelo qual devemos estar gratos. Assim derramada, sobre a obscuridade do luto, a luz deste livro é um acto de coragem, uma celebração do amor e um hino à vida.

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