LIVRO: “Até Que As Pedras Se
Tornem Mais Leves Que A Água”,
de António Lobo Antunes
Ed. Publicações Dom Quixote,
Outubro de 2017
“ - Devia ter morrido em África você
E quem te garante que não morri
pequena, quem te garante que estou vivo”
Após uma passagem pelas duas páginas
iniciais deste livro, reserve-se o leitor o direito de se quedar por
aí, fechá-lo e arrumá-lo muito bem arrumadinho na estante, esquecendo-o para sempre. Caso o não faça, saiba que tem pela frente
um exercício de funambulismo sem rede, um desafio de equilíbrio
precário entre a loucura e a lucidez, o desvario e a coerência, a
irracionalidade e a lógica, o absurdo e o sentido. E que se prepare
para lidar com a crónica de duas mortes anunciadas, os fantasmas
duma guerra insana a rodeá-lo, a agarrarem-se-lhe à roupa, à pele,
às vísceras e a levarem-no, rio acima, numa viagem de pesadelo ao
coração das trevas.
Neste embate inaugural com a escrita de
António Lobo Antunes, um dos aspectos que mais me tocou teve a ver
com essa capacidade de contar a história duma perspectiva
vincadamente pessoal, as experiências vividas e sofridas vertidas
numa narrativa tornada amálgama de emoções, de sentidos sem
sentido, as ideias a desagruparem-se, desencontradas, numa lógica
que só ao autor assiste e que o leitor apenas pode adivinhar. Uma simples palavra, um movimento breve, o
sussurro do vento numa nespereira, um carro que se escuta ao longe, uma
camisa de rendas numa gaveta da cómoda são “cliques” duma
brutalidade insuspeitada, as ideias a dissociarem-se, o olhar até
então calmo a turvar-se, a escurecer, a faca cada vez mais fundo,
cinco segundos e uma ofensiva que rebenta, o horror em volta, Angola
de novo e sempre aqui.
Talvez em nenhum outro livro eu tenha
encontrado uma relação tão forte, tão íntima, entre a forma e o
conteúdo. Ao mesmo tempo piedoso e duro, compassivo e cruel, o autor
denota uma capacidade ímpar de se desdobrar na revelação duma
personalidade torturada que tenta expulsar-se de si sem o conseguir,
os estilhaços duma guerra sem fim a voarem em todas as direcções,
a alojarem-se nas personagens e a contaminarem o espaço em volta,
leitores incluídos. Escreve muito bem, o homem, mas tem, sobretudo,
a coragem de escrever sobre assuntos tão pessoais, tão íntimos.
Porque são assuntos que normalmente se calam, que não se dizem. Que
contam uma história muito diferente daquela contada nos bancos de
escola, duma crueza a roçar o insuportável, sem marcha lento e à
vontade que dê esperança à vida.
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