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LIVRO: “Na Memória dos Rouxinóis”,
de Filipa Martins
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2018


“La memoria es individual.
Nosotros estamos hechos,
En buena parte, de nuestra memoria.
Esta memoria está hecha,
En buena parte, de olvido”.
J. L. Borges (1979), El tiempo


“Não estaria Deus melhor se pudesse esquecer em vez de perdoar? Ou aquele tipo palestiniano do Jornal da Noite que perdeu a família num raide aéreo israelita? Ou eu, que me pergunto tantas vezes    como é que chegámos a esta merda, Camilo?” Esta breve passagem do mais recente romance de Filipa Martins, “Na memória dos Rouxinóis”, revela-se particularmente importante na definição duma possível linha de leitura, não apenas pela abordagem a uma das questões existenciais da Humanidade mas, sobretudo, pela forma como conduz o leitor ao encontro daquilo que é definido como “esquecimento correctivo”, que o mesmo é dizer “esquecer pode ser a melhor solução para tomar decisões”.

Das certezas da matemática - esta é uma curiosa história em torno de um matemático e da relação com o seu biógrafo - às dúvidas do pensamento condicionado pela memória, Filipa Martins faz assentar a narrativa nos conceitos de memória e esquecimento, fundindo-os nessa moeda valiosa chamada tempo. Ao longo do livro, vamos percebendo que a memória é o único mecanismo capaz de trazer o passado para o presente, passado esse capaz de ser anulado ou modificado pelo esquecimento. Por outro lado, o esquecimento, ao mesmo tempo que é uma manifestação da degradação que é o tempo, permite anular o que a memória não consegue suportar dentro de si, ainda que as consequências possam ser imprevisíveis, como se dará a perceber.

Distribuindo a narrativa por três momentos temporais distintos, Filipa Martins oferece-nos uma história muito simples mas muito bela, onde sobressai uma superior eficácia na descrição dos espaços e uma enorme coerência na caracterização das personagens e na forma como articulam entre si. Adoptando uma linguagem crua e sem concessões, o livro desdobra-se entre razão e coração, sem esquecer o estômago, “vazamento de todos os foda-ses, perfurado porque não há pior úlcera do que a úlcera do tipo foda-se”. Não sendo um livro fácil (mas quem é que disse que os escritores existem para facilitar a vida aos leitores?), é no entanto um livro ao qual se adere incondicionalmente desde aqueles “olhos cinzento-espelho” que inundam os primeiros parágrafos. Este é, pois, um excelente romance, de cuja leitura se retira o maior prazer!



LIVRO: “A Gargalhada de Augusto Reis”,
de Jacinto Lucas Pires
Ed. Porto Editora, Maio de 2018


Belo título”! Quase consigo imaginar Jacinto Lucas Pires a rir às gargalhadas com esta tirada de mestre, a última de muitas gargalhadas dispersas ao longo das páginas do livro, na altura em que acabava de escrever as derradeiras palavras. “A Gargalhada de Augusto Reis” é, na verdade, um delicioso divertimento, uma longa rêverie ou, se preferirmos, uma imensa gargalhada em torno de pequenos nadas, equívocos e contradições da vida de todos os dias, com o autor a mostrar-se exímio na forma como dá sentido a uma história que se reparte entre um tempo hoje e um outro, distante 44 anos, o 25 de Abril de 1974 a servir de marco natural daquilo a que poderemos chamar acção. Sem uma linha precisa, a narrativa voga ao sabor dos caprichos do escritor, genial na forma como retorce as suas personagens e as molda ao fio e à medida da(s) história(s), assim conduzindo o leitor nos trilhos deste quase devaneio literário, onde se torna evidente, em todo o seu esplendor, a arte de manipular.

É realmente fascinante perceber como Lucas Pires começa por cativar o leitor com três histórias ao encontro de três personagens aparentemente desfasadas entre si, nas quais se misturam revolução e Estado Novo, pobreza e opressão, sexo e cinema. E depois vemos que nada disto é matéria do livro (ou talvez seja tudo isto ao mesmo tempo). Cada passagem é como uma suculenta e fumegante torrada com manteiga que o autor, por mão própria, nos aproxima da boca, para a retirar no momento preciso em que, salivantes, nos preparamos para lhe desferir uma vigorosa dentada. Se quiséssemos uma prova provada da verdade deste facto, teríamos a própria poesia. Este é um livro que respira poesia, se alimenta dela, a enumera e reverencia ao virar de cada página… mas onde não encontramos um só poema, uma parcela que seja. Quando muito, um título!

Neste livro vem ao de cima a forte ligação do escritor com o cinema e as artes do palco, exímio em criar imagens a partir das situações mais banais. Uma página escrita, adormecida no alto dum monte de lixo, assemelha-se à pele de alguns peixes, o travo dum certo uísque escocês pode conter uma casa inteira a arder e Li Bai, Mallarmé e Manuel Bandeira cabem por inteiro num covilhete duma certa pastelaria em Vila Real. Penso não dever revelar mais do que já revelei, convidando aqueles que quiserem aprofundar o assunto a lerem a sinopse (não será difícil encontrá-la na net, afinal a crítica quase se reduz a sinopses hoje em dia). Aquilo que posso asseverar é que “A Gargalhada de Augusto Reis” tem de ser lido e saboreado em estado virgem. Um livro que é, todo ele, um “poema em cima da hora”, de tal forma a vida roda célere e os pequenos nadas de que é feita tornam as pessoas mais próximas e mais iguais, nas ambições ou na dúvida, nas emoções ou na poesia, na forma como manipulam ou se deixam manipular. E depois, na vida, como na escrita, haverá toda uma arte que fará a diferença!




LIVRO: “E Se Eu Fosse Deus?”,
de Fernando Correia
Ed. Guerra e Paz, Setembro de 2017


“E Se Eu Fosse Deus?” é a história do encontro de Fernando Correia, jornalista, com Henrique, um homem que “tem uma casa grande, enorme, a perder de vista. O seu tecto é o céu. O calor que lhe chega vem do sol (…). O soalho é, na maioria das vezes, de erva e pedra.” Ao longo do livro, Henrique vai encetar um diálogo com o narrador que, mais do que levá-lo a visitar os “bas fond” da cidade, o obrigará a mergulhar no mais profundo de si mesmo, à procura da resposta a essa pergunta enigmática: “E se eu fosse Deus?”. De Monsanto à Gare do Oriente, do Rossio a Pina Manique, ambos irão viver as histórias de Palmira, de Natália do Casalinho, do Dr. Magalhães, de Maria Madalena, do “homem do futebol”, de Miss Lizzy, de Maria das Dores, de Carla com o seu bebé, do Ti Chico e de muitos outros, anónimos e desprotegidos, onde se descobre tanto de humanismo e dignidade como de uma forte vergonha em não se quererem mostrar e de uma raiva ainda mais forte contra os que mandam e não têm vergonha.

Crónica duma actualidade premente, “E Se Eu Fosse Deus?” pode ser visto como um manifesto filosófico onde, no limite, a rua é sinónimo de liberdade. Sem-abrigo por opção, em nome da própria liberdade, Henrique sabe de antemão que não pode ser Deus, mas sabe o que faria e como actuaria se fosse Deus! Transitando entre a verdade do livro e a verdade de todos e de cada um, esta é uma história que convida o leitor a encontrar respostas verdadeiramente transformadoras, fazendo-o olhar em volta e levando-o a uma tomada de consciência dos problemas e da forma de os resolver com a necessária adequação e urgência. E isto não diz respeito apenas ao problema dos sem-abrigo, mas contempla igualmente a droga e o álcool, a exploração de menores, a prostituição feminina e masculina, o desemprego e a fome, a violência doméstica, o abandono dos idosos em lares e muitas outras chagas sociais que alastram nos dias de hoje.

Embora “E Se Eu Fosse Deus?” se defina como um romance, percebe-se no livro uma dimensão que vai muito além disso. A narrativa filia-se no jornalismo de investigação e segue um fio condutor que visa unir as várias histórias, sem contudo renegar a sua identidade. Fernando Correia assume-se, desde o início, como o jornalista que é e, de forma idónea, consegue levar o seu papel até ao fim, num registo realista, ao mesmo tempo acutilante e comovedor. É na verdade com que são identificados e denunciados a miséria e o caos social e moral em torno dos sem-abrigo que reside a grande força deste livro. Um livro escrito com o coração mas que consegue manter a lucidez e o distanciamento necessários para não cair na pieguice ou no moralismo fácil, oferecendo ao leitor um retrato vivo e objectivo duma realidade à qual a maioria prefere virar a cara.




LIVRO: “A Devastação do Silêncio”,
de João Reis
Ilustrações | Lord Mantraste
Ed. Elsinore, Abril de 2018


É um encontro entre dois amigos. Ou talvez não seja bem um encontro, talvez nem sequer sejam amigos. Mas é, seguramente, o tempo de um capitão do Corpo Expedicionário Português recordar os momentos de cativeiro às mãos do exército alemão, agora que a I Guerra Mundial chegou ao fim e está de regresso à pátria. E se para um, transformado em narrador, este é um tempo de catarse, uma oportunidade mais de extirpar da memória acontecimentos tão vivos e marcantes, para o outro é apenas o tempo de se impacientar, escutando uma história que constantemente se desvia do seu propósito inicial, o de detalhar a ocasião em que os fonólogos alemães gravaram as vozes dos detidos.

Uma das leituras mais imediatas que se retiram de “A Devastação do Silêncio” vai de encontro ao postulado de José Ortega Y Gasset, o de que “o homem é o homem e a sua circunstância”. A narrativa é, toda ela, uma menção a um tempo terrível, de privações de toda a ordem, um tempo marcado pela fome e pela doença, pelas arbitrariedades, pelo expediente fácil, de novo pela fome. E pelo silêncio, o devastador silêncio, um silêncio palpável, auto-imposto pela circunstância de alguém se encontrar numa situação de absoluta precariedade física e moral, privado de liberdade, a quem nada mais resta do que calar o que se sente, impedindo-se de dar voz à torrente de sentimentos desencontrados que lhe afloram à mente. Mas a circunstância muda e, para o narrador, este encontro, ainda que indesejado, representa uma oportunidade de expiação, o discurso a subir de tom, a náusea a adensar-se até atingir o surreal. Paradoxalmente, do outro lado há alguém que escuta e se impacienta, pouco interessado em seguir a lógica do discurso, dispensando o essencial na ansia de beber o acessório. Um alguém que pode até ser o leitor.

Relato mordaz duma sequência de episódios que remetem para a I Guerra Mundial, agora que se celebra o centenário do armistício e novos e mais devastadores conflitos se avistam no horizonte, “A Devastação do Silêncio” é um livro genial na análise que faz do absurdo da guerra – de todas as guerras (!). João Reis é exímio em detalhar a fragilidade e vulnerabilidade da condição humana, os títulos e hierarquias extintos quando “sobreviver” é a palavra de ordem, o homem tornado igual em tudo ao seu semelhante. Mas este é um livro que nos fala também do valor do tempo, da sua imponderabilidade, da sua relatividade face àqueles que suportaram situações limite e vivem o hoje como se não houvesse amanhã e tantos outros que desconhecem o que fazer com o tempo, dando-se ao luxo de o desperdiçar. Finalmente, há no livro uma pontinha de Kafka, ao mesmo tempo perturbadora e fascinante, particularmente evidente na relação de Lang, o médico do campo de prisioneiros, com a sua mulher. Mas isso ficará para o leitor descobrir.




LIVRO: “Os Amantes Tristes” / “Los Amantes Tristes”,
de Eugenia Rico
Tradução | Marcelo Teixeira
Ed. Edições Parsifal, Maio de 2018


Quando liguei para a livraria e me disseram que iriam receber nesse dia três exemplares de “Os Amantes Tristes”, pedi para me reservarem um. Sensivelmente àquela hora, Eugenia Rico apresentava publicamente o livro na Fundação José Saramago e estaria em Ovar três dias mais tarde, para uma muito aguardada sessão das “Conversas Úteis”. Antes de a conhecer, queria saber algo sobre ela e a melhor forma de o descobrir seria lendo-a. Foi o que fiz, mergulhando no romance mal cheguei a casa. Duas horas mais tarde, tinha acabado de ler o livro. O facto de serem pouco mais de cem páginas permite explicar algo, mas é na sua escrita ágil, na enorme envolvência criada em torno de três personagens tão singulares e na carga poética que se derrama de cada linha, que reside a verdadeira causa de tamanha sofreguidão. De tal forma que voltei a lê-lo no dia seguinte, completando a leitura com a tomada de algumas notas que me servem, agora, de base a uma breve análise crítica deste livro tão belo.

“Os Amantes Tristes” é uma história sobre a amizade e o amor, uma história de emoções à flor da pele, na qual a poesia se solta de cada página, directa ao coração do leitor. “Os gregos acreditavam que a amizade é mais sublime do que o amor, porque apenas existia entre os homens, enquanto o amor também pode acontecer com as mulheres, esses seres inferiores destinados a parir”, pode ler-se a páginas tantas. Em que medida é isto verdade, onde reside a verdade de cada leitor, iremos descobrindo ao longo do livro. Mas esta é – acabaremos por percebê-lo - uma das frases que Eugenia Rico elege como suporte do romance, convidando o leitor a ler para além do que está escrito. Pode ser um livro triste – tal como o próprio título permite intuir –, de tons baços, escuros e frios, onde quase sempre é Inverno (e, mesmo quando o não é, chove), mas sempre acabaremos por aquecer a alma num abraço ou num olhar, por sentirmos um aconchego num simples aperto de mão ou numa frase breve.

Vale a pena referir também que este é um livro que entrega ao leitor a medida do tempo, no sentido em que a distinção entre a manhã e a tarde, o dia e a noite, um mês e o mês seguinte, nunca é rígida. Na forma como escreve, Eugenia Rico viola o tempo propositada e reiteradamente. Podemos ver que, entre o Inverno e o princípio de Março, vai “quase um ano”, como se o tempo de cada um fosse diferente (e não o é, realmente?). Se falo nesta questão do tempo é porque me parece importante vincar a ideia que a escrita de “Os Amantes Tristes” é muito cinematográfica, tanto dum ponto de vista visual como formalmente, os espaços entre as cenas (os tempos!) deixados em branco, pedindo ao espectador / leitor que seja ele a fazer o “trabalho de casa”. E há depois essa imagem que abre o livro, um telefone que toca, um pedido de auxílio do outro lado da linha, uma vida que se apresta a mudar a partir daquele instante. No final regressaremos ao ponto de partida, o pedido de auxílio sempre latente, nesta circularidade se percebendo a carga cinematográfica que o livro contém.

Finalmente, gostaria de vincar a ideia que este é também um livro de denúncia, um manifesto social que faz o contraponto entre ricos e pobres, os que detêm o poder e os que são alvo de todas as arbitrariedades. “Talvez o pior não aconteça e este planeta continue a girar em condições razoáveis. Os pobres morrerão de fome e os ricos clonar-se-ão a si próprios. Desta forma, espera-nos um futuro ideal, sem pobreza ou fealdade. Um mundo em que restem apenas os bonitos e os ricos. Mas então alguém terá de servir-lhes café e terão de reinventar os pobres. Os robôs nunca poderão substituí-los, porque não dá o mesmo gozo lixar uma máquina que lixar um semelhante. A máquina não sofre. O outro, que é como tu, que poderias ser tu, é o que dá a medida do teu poder e da tua importância.” Extracto duma carta dum homem internado compulsivamente num hospital psiquiátrico, este breve texto é o exemplo acabado do quanto Eugenia Rico coloca nas mãos do leitor em termos de decisão. Quem serão os loucos e por onde andarão, parece perguntar.




TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com Eugénia Rico
Museu de Ovar
26 Mai 2018 | sab | 21:30


Eugenia Rico foi a convidada de Maio das “Conversas Úteis”, conjunto de tertúlias literárias promovidas pelo Museu de Ovar e particularmente vocacionadas para o campo das letras. Como habitualmente, a moderação esteve a cargo de Carlos Nuno Granja e, uma vez mais, o saldo foi deveras positivo, de tal forma a escritora abriu ao público a sua cumplicidade e encanto, o seu requintado sentido de humor e a sua visão clara e acutilante sobre o mundo actual, e em particular no que à literatura diz respeito.

Nascida em Oviedo, Eugenia descobriu que queria ser escritora com cinco anos de idade, tendo publicado o seu primeiro conto aos onze. Os estudos em Direito e Relações Internacionais levaram-na a França e à Bélgica, mas os livros acabaram por falar mais alto e, em 2000, publica o seu primeiro romance, “Los Amantes Tristes”, o primeiro duma trilogia que prosseguiria com “La Muerte Blanca” (2002) e “La Edad Secreta” (2004). Tem, até hoje, nove livros publicados, quatro dos quais traduzidos para português, sendo “Los Amantes Tristes” / “Os Amantes Tristes”, a sua publicação mais recente no nosso País. Apresentado na Fundação José Saramago no passado dia 23 de Maio de 2018, “Os Amantes Tristes” estiveram na origem da vinda da escritora a Portugal e, num programa recheado de grandes acontecimentos, a passar pela nossa cidade para uma agradável troca de impressões e partilha de algumas curiosidades e experiências com o público ovarense. A acompanhá-la esteve Marcelo Teixeira, dirigindo também ele algumas palavras ao público e enriquecendo a tertúlia com a sua visão de tradutor e editor desta obra.

“Há muitas maneiras de matar um homem, mas uma das mais tremendas é impedi-lo de dormir. O homem não morre por não poder descansar, mas sim por não poder sonhar. Sempre que uma Nação conquista a sua independência, é dos artistas que se socorre para que sonhem os seus jovens ideais. Precisamos de artistas que sonhem o sonho dos povos.” Com estas palavras, Eugenia Rico começou por colocar-se a si e ao conjunto da sua obra no campo dos sonhos e explicou por que é que pensa poder oferecer-se a si própria o “luxo” de escrever: “Durante muito tempo não me foi fácil entender o sentido de escrever quando há tanta gente que não sabe sequer ler. Com o tempo acabei por perceber que tudo o que escrevemos é para sempre, existirá para lá de nós. Escrever é parte dum caminho de evolução para a Humanidade.”

Quanto à sua escrita, dum ponto de vista formal, Eugenia Rico gosta de se comparar a um argumentista (talvez ao facto não sejam alheios os seus estudos em Arte Dramática e Guionismo para Cinema, que cursou sob a direcção de Fernando Trueba). “O escritor faz o guião mas é ao leitor que cabe o papel de realizador. É ele quem determina que os tempos sejam mais lentos ou mais breves, quem faz o casting. Quando escrevo, deixo espaços no livro para que o leitor os possa completar. O verdadeiro detective é o leitor porque só o leitor sabe o que acontece verdadeiramente”, revela a escritora. Particularmente em relação a “Os Amantes Tristes”, Eugenia Rico confessou que, antes de o publicar, tinha páginas e páginas escritas guardadas na gaveta, associando a decisão de avançar com a sua publicação a um episódio marcante na sua vida, uma infeção num pé que resultou num delicado regresso a Madrid e numa intervenção complexa. Num mercado enorme e particularmente competitivo como o espanhol, foram muitas as portas que, no início, se fecharam à escritora. Mas a sua persistência acabou por dar frutos e ela é hoje um dos nomes importantes das letras no país vizinho, com obra editada na Alemanha, Itália, Grécia, Bulgária, Holanda, Rússia, Estados Unidos, México e Brasil.


P. S. - Para a parte final da tertúlia estava guardada uma enorme surpresa, a da descoberta em Ovar do primeiro leitor português de “Os Amantes Tristes”. Importará aqui referir que o leitor sou eu e que a minha recensão crítica ao romance de Eugenia Rico será publicada já de seguida. Aí se desvendará um pouco daquilo que constituiu uma particular conversa com a escritora, um momento privilegiado de partilha e conhecimento e que guardarei com especial carinho.




LIVRO: “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”,
de Ana Margarida de Carvalho
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Teorema, Abril de 2016


“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Quando tendemos para ver na frase que abre a Declaração Universal dos Direitos do Homem uma verdade irrefutável, o pensamento estilhaça-se no sangue e nas bombas do Sudão do Sul ou do Delta do Níger, de Ghouta oriental ou da Faixa de Gaza. Vogando na vertigem de correntes desencontradas, entre certezas que teimam em afirmar-se e as muitas dúvidas que constantemente nos assaltam, buscamos refúgio num livro, aconchegamo-nos “nos olhos de um gato” e logo tudo se aclara. Na fome e na sede, no calor e no frio, na raiva e na dor, na vida e na morte, são nulas as diferenças. De cor e de género, de origem, de estrato económico e social. Na sua condição mais elementar, despojado do que é seu, posto a nu perante o próximo, fica o homem reduzido ao seu nome de baptismo e ao corpo com que veio ao mundo, livre e igual aos outros homens. É esta a verdade do romance de Ana Margarida de Carvalho. Uma verdade irrefutável!

Com “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”, oferece-nos a autora uma obra poderosíssima quanto à temática que aborda, assente numa linguagem extremamente cuidada e, sobretudo, num desenho narrativo engenhoso e imaginativo, que ora nos agarra pelas tripas, ora nos prende pelo coração. Arrojados a uma praia, estreita língua de areia cercada por altas e intransponíveis escarpas, um grupo de náufragos tenta, desesperadamente, sobreviver face à escassez de meios de que dispõe. Ritmando o seu quotidiano pelo vai e vem das marés – que lhes permite percorrer o areal duas vezes ao dia -, o grupo ora se ufana em garantir o parco sustento que retira do mar, ora se recolhe a um recôncavo elevado na rocha, gruta miniatural, abrigo precário das investidas das ondas. Em número de oito, os náufragos formam um microcosmos social à mercê das circunstâncias, obrigados, em nome da sobrevivência, a pôr de parte aquilo que os separa.

A leitura de “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato” proporciona um prazer enorme da primeira à ultima página. Ana Margarida de Carvalho é inexcedível de generosidade na forma como detalha cada capítulo, pondo à prova os nossos fantasmas e preconceitos, as nossas convicções, os nossos medos. O “monólogo da Santa”, logo a abrir o livro, é disso o mais acabado exemplo. Chegamos a hesitar no momento de virar a página, de tal maneira é forte e impressiva a ladaínha de Nossa Senhora de Todas as Angústias, corpo de pau e cabeleira indígena, o caos sendo uma das ordens de Deus. Com tanto por dizer, tantas sensações por descrever, tantas imagens por contar, acrescentaria apenas que, tal como em “Que Importa a Fúria do Mar”, o anterior romance da escritora, Ana Margarida de Carvalho reincide no desenvolvimento de uma espécie de “private joke”, introduzindo, aqui e além, pequenas frases subtraídas às letras dos nossos cantautores. É assim que nos deixamos embalar na leitura pela trilogia da “Lusitana Diáspora”, de Fausto Bordalo Dias, do “Canto Dos Torna-Viagem”, de José Mário Branco, de “Os Conquistadores”, de Sérgio Godinho ou dum muito a propósito “O Navio Negreiro”, de Caetano Veloso, entre outros. Até mesmo com a voz de António Zambujo (ou terá sido com a letra de Maria do Rosário Pedreira?) é possível cruzarmo-nos por lá, num “pedaço de mau caminho”.


P. S. - No título, a frase recorrente do“Poema do Desamor”, de Alexandre O'Neill, é como um convite a uma pequena brincadeira: “Desmama-te desanca-te desbunda-te / mas não vais encontrar outro livro assim // Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te / mas não vais encontrar outro livro assim // Arranha arrepanha apanha espanca / mas não vais encontrar outro livro assim”.




LIVRO: “Ensina-me a voar sobre os telhados”,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Março de 2017


Lembro-me de ser criança e de ter um sonho recorrente no qual era capaz de voar. Tomado de tal leveza, o meu corpo elevava-se no sono, atravessava a placa da casa e o telhado e, erguendo-se a grande altura, permitia-me ver, com uma nitidez única, os campos onde brincava com os meus amigos, o coradouro onde jogávamos à bola, os pardais que voavam em bando por baixo de mim, o rio com os seus peixes que apanhávamos à mão no auge das férias grandes. E eu sorria, sorria sempre. Não posso mais esquecer a felicidade que sentia quando “levitava”. Ainda que em sonhos, estava ali a materialização desse secreto desejo de voar que anima o homem desde que se lembra de ser homem. O tempo foi passando, os sonos tornaram-se mais leves e curtos, os sonhos esparsos, quase raros. Nunca mais “levitei”. Só agora voltei a fazê-lo, graças à leitura de “Ensina-me a voar sobre os telhados”.

De João Tordo recordo, para além dos livros que lera anteriormente – “O Paraíso segundo Lars D.” e “Biografia Involuntária dos Amantes” –, uma conversa pela noite fora no Museu de Ovar, em Dezembro de 2017, na qual o escritor disse esta coisa espantosa: “Escrever é deixar que todas as vozes que temos dentro de nós venham ao de cima e falem”. Procurando concretizar a ideia, falou das vozes que, surgidas do nada, ia anotando em pedacinhos de papel e que, “na hora da verdade”, reunia e escutava. É assim que gosto de imaginá-lo, à secretária, a escrever este livro, o tampo da mesa a transbordar de papelinhos de diferentes tamanhos, alguns de cores que não o branco. É nesses, mais chamativos, que julgo encontrar uma espécie de lembrete com “diálogos de Ménon, de Platão”, ainda “o dilema não é não sabermos, é não saber que sabemos”, ou mesmo “a vida humana não é marcada pela ignorância, mas pelo esquecimento”.

Nas breves citações do final do parágrafo anterior encontrei eu um fio condutor desta história que percorre a vida duma família ao longo de três gerações, à medida que nos vamos dando conta de um terrível segredo. Trata-se dum fio muito ténue, talvez de seda, difícil de perceber, mais difícil ainda de alcançar, mas que anda por ali para nos lembrar que não devemos desistir de acreditar no impossível. Estou certo que outros leitores farão do livro outras leituras, escutarão outras vozes, chorarão outros choros e rirão outros risos. Mas todos encontrarão no livro espaço para que as vozes que existem em cada um venham ao de cima e falem também.

“Observo o meu rosto no vidro, inundado pela luz, e descubro que estou a sorrir”. É a última frase do livro de João Tordo, mas nenhuma outra poderia traduzir melhor o estado de felicidade em que me encontro, tornada que foi a derradeira página de “Ensina-me a voar sobre os telhados”. Foram dias de prazer e devaneio, de sonho e de reflexão, sobretudo duma profunda emoção perante prosa tão límpida e leve, tão rica de imagens e de emoções, tão bem articulada nos tempos distintos em que se desenvolve, ritmada como um poema, intensa como o aroma da terra molhada após uma tempestade de Verão. Agora que chego ao fim, é realmente com um sorriso que aperto o livro entre as mãos para o depositar em seguida na estante, deixando-o a descansar num lugar do lado esquerdo, do lado do coração.




LIVRO: “Gente Séria”,
de Hugo Mezena
Ed. Planeta Manuscrito, Fevereiro de 2018


Talvez deva começar por referir que a leitura de “Gente Séria” constitui uma agradável surpresa, não apenas pela desenvoltura demonstrada por Hugo Mezena na recriação de personagens e ambientes mas sobretudo pela forma subtil como consegue brincar com coisas sérias. É isso que se intui logo no primeiro capítulo – com o sugestivo título de “O Sovaco” - e se confirma à medida que a leitura avança, ora suscitando saborosas gargalhadas, ora obrigando a engolir em seco.

Nesta sua primeira obra, o autor serve-se do olhar dum rapazinho de dez anos para traçar o retrato social duma comunidade rural à beira da viragem do milénio e, por extensão, deste país que temos e somos. Um retrato que tem o seu início em 1987 e que, partindo do núcleo familiar mais restrito – onde pontuam uma catrefada de tios e um avô com rotinas no mínimo estranhas -, se estende ao padre e à catequista, ao presidente da Junta e ao tractorista, à professora e ao “simplório” do lugar. E que nos mostra do que a natureza humana é capaz numa pequena aldeia grávida de hipocrisia, inveja, ciúmes, transgressões, rivalidades, calúnias, traições e boas e más acções. Aliás, uma das leituras possíveis de “Gente Séria” consistirá, porventura, em pensar, à luz destes retratos, um País que é um verdadeiro paradoxo, no qual as assimetrias se agravam a cada dia que passa, tão próximo de tudo mas sempre tão afastado, um país “simplex” feito de gente simples, mas acima de tudo de gente séria (com aspas ou sem elas, como se queira).

Da leitura de “Gente Séria” ninguém sai incólume. A acção tem data mas não é datada. É impossível ao leitor não se rever numa parte substancial do que ali é narrado, se não como elemento sugestivo das suas próprias vivências, pelo menos das de muitos que lhe são próximos. Benomilde pode não ter este nome no mapa, mas aquela aldeia existe na realidade e não é, garantidamente, uma caricatura. Com uma escrita fácil e apelativa, “Gente Séria” está recheado de momentos deliciosos, permitindo-me destacar esse “registo de pecados” que, com os anos e o entendimento, se verá transformado em “registo de pensamentos”. Já na parte final do livro, Hugo Mezena brinda-nos com um Interlúdio que é, ao mesmo tempo, uma marca distintiva do seu génio enquanto escritor. O olhar acutilante atinge aí o seu expoente máximo, num registo avassalador que subjuga o leitor, obrigando-o a olhar para o interior de si mesmo e a pensar o mundo e os homens tais como eles são.




TERTÚLIA: “Porto de Encontro”,
com José Rentes de Carvalho
Auditório da Biblioteca Almeida Garret, Porto
14 abr | sab | 17:00


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José Rentes de Carvalho foi o convidado de honra da segunda sessão do “Porto de Encontro”, em Dezembro de 2011. Regressou agora, mais de seis anos depois, com a mesma vitalidade, a mesma sageza, com mais sentido de humor, até, para uma tertúlia que pretendeu comemorar o 50º aniversário da sua carreira literária. Uma carreira da qual fazem parte mais de 30 títulos onde cabem os soberbos “Com os Holandeses”, “Portugal, a Flor e a Foice”, “A Sétima Onda”, “La Coca”, “Ernestina”, “A Amante Holandesa”, “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, “Mazagran”, “A Ira de Deus sobre a Europa”, “Montedor” ou “O Meças” - estes dois últimos já lidos e comentados aqui no Blogue. Uma carreira escalpelizada ao pormenor numa conversa extraordinariamente conduzida por Sérgio Almeida e que contou ainda com a participação do escritor e editor Francisco José Viegas, do actor António Durães e do público, que esgotou completamente o Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett e que não deixou de colocar algumas questões ao escritor.

“Porque é que nasci aqui?” Foi com esta questão - que José Rentes de Carvalho colocou a si próprio - que tudo começou. Natural de Vila Nova de Gaia mas a viver na Holanda há 62 anos, o escritor sente-se “extremamente português”, mas admite que há como que uma dicotomia: “Aquilo que em mim é holandês está muito separado daquilo que em mim é português”. Fala em holandês, pensa em holandês, mas sonha em português e confessa ter medo de que esta crescente influência do holandês venha a dominá-lo por completo: “Não tenho medo de ficar doente mas tenho medo de perder a minha língua”, remata.

“A boa disposição é talvez melhor do que a saúde”, são palavras de Rentes de Carvalho. E foi sob o signo da boa disposição que a conversa prosseguiu, com algumas pérolas a surgirem em resposta às questões do moderador: “A maldade tem muito interesse”, “criar uma personagem dura é descartar um pouco do veneno que há em mim”, “nasci contra e sou contra seja o que for”, “quando as coisas estão a ficar muito bonitinhas, dou-lhes uma torcidela” ou “tenho uma grande capacidade de mentir; minto a mim próprio” são exemplos que justificam a sua escrita e os temas que lhe estão subjacentes. Uma escrita na qual “a inspiração está ausente”, diz, e que é fruto de “muito trabalhinho e de uma boa dose de acaso”. “O Meças”, uma das suas obras mais recentes, parece ser um bom exemplo disso mesmo: “O livro começou na minha cabeça com a imagem dum homem sentado num muro à espera dum autocarro. Não sei como nem de onde surgiu essa imagem, tão pouco sei quem era aquele homem. Comecei a escrever sem qualquer intenção de que essa seria uma personagem maligna ou cruel. Mas à medida que o livro foi crescendo, foi caminhando num certo sentido. Não sei como. Conheço os ambientes mas não aquelas pessoas. É talvez este o mistério da criação literária. Não faço ideia!...”

Falar da Holanda e falar de Portugal, fazer o contraponto entre os dois países, parece ser algo que, embora dividindo sentimentalmente o escritor, surge perfeitamente estruturado na sua mente. “Eu não saí de Portugal, eu fugi de Portugal”, diz, acentuando essa ideia de fuga e acrescentando que foi dum país, duma sociedade e das pessoas que o asfixiavam que fugiu. Ainda o dedo acusador: “Nunca compreendi como é que o meu país não quis saber de mim ou se esqueceu de mim”, refere a propósito da sua carreira literária, só agora a começar a ser conhecida e devidamente valorizada nonosso país. Mas diz não querer mal às pessoas - “é a vida como ela é...”, citando Nélson Rodrigues - e  promete continuar a escrever, um processo que se mostra pouco produtivo quando está em Portugal: “Aqui, levanto-me às 6, escrevo das 7 às 10, depois começo a preparar-me para ir ao Restaurante, como aquele Bacalhau à Narcisa, bebo um copo de vinho, sobremesa, chego a casa às 2 e meia e depois o que faço? Vou para a cama!” Esta confissão, como muitas outras, arrancou saborosas gargalhadas na plateia e confirmou um homem no vigor dos seus 88 anos, a prova provada da certeza das suas palavras: “As vicissitudes da vida ajudam a manter a jovialidade e a saúde”.




LIVRO: “Viagem ao Sonho Americano”,
de Isabel Lucas
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Junho de 2017


Há um motorista de autocarro português no trajecto entre Providence e New Bedford e uma enfermeira de New Jersey chamada Ana, neta de dominicanos. Há um cantor islâmico chamado Salaad e uma mulher no metro que grita, metade em espanhol metade em inglês, que na cama dela só se deita quem ela quiser. Há um Marco Tulio que se apresenta como brasileiro e serve há dois anos o exército norte-americano numa base no Alasca. Há um cão que dá pelo nome de Emmett Kelly. Há um céu às cores e na montanha, ao longe, a palavra Hollywood. Há duas mulheres numa banca de peixe que discutem política e há crianças alimentando mendigos, como quem alimenta pombos, junto à estação de comboios de Washington D.C.. Há Neil Young e o massacre de Kent. Há Hillary e Trump e Cruz e Sanders. Há uma mulher que atravessa a rua de trotineta e tailleur. Há essa pergunta, mil vezes repetida: “How do you do your laundry?” E há, naturalmente, o sonho americano!

“Viagem ao Sonho Americano”, o livro, começa em finais de Fevereiro de 2016, com Isabel Lucas a encetar um périplo pelos Estados Unidos da América. Ao longo de um ano e de 97 mil quilómetros percorridos, vai tomando o pulso a uma Nação que deixa para trás Obama e o seu legado e tem agora em Donald Trump o novo inquilino da Casa Branca. Levado na viagem e no sonho, o leitor vai tomando, também ele, o pulso a uma América que, afinal, parece conhecer de cor, de tal forma lhe soam familiares os nomes, os lugares, até as situações, por mais bizarras que possam ser. É, afinal, o “sonho” inculcado nos próprios sonhos, de tanto o ver retratado em filmes como “E Tudo o Vento Levou”, “Peço a Palavra”, “Do Céu Caiu uma Estrela”, “À Beira do Abismo”, “O Mundo a Seus Pés” ou, mais recentemente, “Era Uma Vez na América”, “Fargo” ou “Pulp Fiction”.

Isabel Lucas podia ter feito do cinema o ponto de partida para esta viagem. Ou da música, da arte, dos ideais de liberdade, até. Optou, no entanto, pela literatura, porque é lá que está tudo. “Daí esta viagem ser a partir de livros que levam a outros livros, porque não existem bons livros nem bons homens sem contágio”, diz ela. E fez bem, digo eu, apesar de me debater agora entre a vontade de reler Herman Melville, Virginia Woolf, F. Scott Fitzgerald ou John Steinbeck e a intenção de descobrir Donald Ray Pollock, Cormac McCarthy, Toni Morrison ou Edwige Danticat, entre vários outros. Do livro fica tanta coisa... Fica, desde logo, não uma América, nem duas, nem três, mas tantas quantos são os Americanos. Fica uma América dividida, tomada pela estranheza, marcada pela violência. Uma América vasta, das grandes extensões geladas do Alasca ao Oeste selvagem ou ao skyline de Manhattan. Fica uma América que se questiona, se desconstrói e se reinventa no sonho e que, através dele, pula e avança. E fica esse som que obriga a fechar os olhos e a escutar com atenção. Um som que vai enfraquecendo mas teima em não se apagar. Sim, um som. Talvez o de um comboio a passar ao longe, à noite.




LIVRO: “O Meças”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Quetzal Editores, Maio de 2016


Após uma primeira incursão no universo literário de José Rentes de Carvalho – com “Montedor”, o seu romance de estreia (1968) -, de novo essa sensação de mal estar, quase repugnância, perante a figura central dum livro seu, desta vez António Roque, o “Meças” do título. Com o Freitas, de “Montedor”, partilha esta personagem doentia os mesmos referentes geográficos e sociais. Num caso, como no outro, estamos perante alguém à margem da sociedade, voltado sobre si mesmo, com uma história de vida miserável, sem infância, sem essa capacidade de aprender com as experiências pessoais, faltando-lhe a introspecção de si mesmo e do efeito do seu comportamento nos outros, sem remorsos nem vergonha, sem objectivos de vida realistas. Ambos se arrastam num presente que é uma verdadeira morte lenta. Mas enquanto o Freitas é um pobre coitado, “sem cara para levar um estalo”, o Meças é um sádico e um depravado, um homem violento, um psicopata da pior espécie, nutrindo um particular desprezo pela vida e pelos valores que lhe são intrínsecos.

A acção decorre em Trás-os-Montes, mas estamos aqui muito distantes do “reino maravilhoso” de Miguel Torga. Este é um Trás-os-Montes “de gente heróica, lúbrica, ladina, pateta, pacóvia, malandra, espertinha, orgulhosa, humilde, amável, cheia de defeitos perigosos e de virtudes escondidas, isolados do mundo, regressados do mundo, ricos remediados e pobres sem lugar a não ser no cemitério”, conforme resumiu Francisco José Viegas a propósito da obra do autor [ver AQUI]. Assim, ler “O Meças” é ir ao encontro dum microcosmos social que permanece imutável desde tempos imemoriais, moldado pela dureza dos elementos, subsistindo na estreita faixa das necessidades básicas do nascer, comer, procriar e morrer, feito de gente primária, relacionando-se maquinalmente e que, nas suas reacções instintivas, faz vir ao de cima o melhor e o pior que há no ser humano.

Fernando Pessoa dizia que “o génio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio” e este é um aspecto muito interessante que se evidencia em “O Meças” e se vai cristalizando à medida que avançamos na sua leitura. Determinada pela construção da Barragem do Sabor, a subida das águas vai apagando da superfície da terra a paisagem duma infância recalcada, obrigando o Meças a refugiar-se no mais alto dos montes, transportando consigo as sementes da violência e do ódio. A cada nova página a mesma atitude desajustada face ao outro, à vida, ao mundo. Uma atitude com uma direção apenas, que se deteriora de forma irrevogável. O mal que alastra é uma certeza. Vira-se cada página em permanente sobressalto, na certeza de que o pior ainda está para vir. Cada passo, cada gesto, cada palavra proferida, traz consigo apreensão e medo. Fiel a uma escrita rasteira, sem facilidades nem concessões ao bom gosto, Rentes de Carvalho tem esse dom de dar a ver para lá do óbvio, recriando universos ficcionais que vão de braço dado com a realidade.  A mão que, delicadamente, pousa sobre o ombro é a mesma capaz de derrubar, com um murro, o homem mais possante. Para o Meças não há remissão. Só a morte o apaziguará.




LIVRO: “A Febre das Almas Sensíveis”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2018


Quando o propósito é reflectir sobre aquilo que nos legam certos livros, virada que foi a derradeira página, casos há em que importa alguma cautela, não vá a emoção, qual febre, toldar-nos o entendimento. “A Febre das Almas Sensíveis” é um desses livros. Pelo muito que diz e pela forma como o faz. Poderia ser lido de um fôlego, mas naquilo que, de mansinho, vai pondo a nu, no que convoca de dor e coragem, de sofrimento e resignação, de vida e morte, há matéria demasiado substantiva para se dar o leitor a pressas. Numa escrita límpida, pessoas, lugares e coisas são-nos apresentadas com tal dose de exactidão e elegância, que é de coração apertado que vemos colarem-se-nos à pele, página após página, aqueles quadros, unindo-nos agora pelas mesmas causas, animando-nos nas mesmas (pequenas) vitórias, provando-nos impotentes face à mesma miséria, separando-nos dos outros e de nós próprios nas mesmas tragédias.

É curioso perceber como o livro se relaciona com a imagem de capa, “Separação”, pintura de Edvard Munch, um homem que acreditava que as sombras eram a fonte da sua arte. É com linhas suaves, detalhadas, impressivas, mas com uma paleta reduzida aos tons mais sombrios, que Isabel Rio Novo “pinta” este seu livro. Uma pintura feita de camadas e que resulta num quadro tão belo quanto amargo; sobretudo quando vemos que é da tuberculose em Portugal na primeira metade do século passado que nos fala o livro, sendo a “febre das almas sensíveis” apenas um eufemismo para designar esse flagelo que matava 20.000 pessoas a cada ano. E que não se resumia a atingir apenas as “almas sensíveis”, os poetas, antes “era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. (…) Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável”, conforme pode ler-se a páginas tantas.

Mas voltemos às pinturas, às camadas, às analogias. A mais superficial é precisamente a tuberculose e a forma como marca, de forma brutal, uma família entre tantas outras. Há depois uma segunda camada, justificada por um tempo outro, o tempo presente, onde a figura duma jovem investigadora se mostra determinante para conhecermos, ainda que ao de leve, algumas dessas “almas sensíveis” a que o título alude: Cesário Verde, António Coelho Lousada, Soares de Passos, Júlio Dinis, António Castro Alves, António Nobre, Casimiro de Abreu ou Sebastião da Gama. Mas é precisamente através da jovem investigadora e da transcrição dum manuscrito descoberto no que resta dum sanatório, “Considerações sobre a morte, alinhavadas por R.N.” (de “Reis Novo” / “Rio Novo”) que acedemos à camada mais íntima, intemporal, à essência deste livro e, atrevo-me a dizê-lo, ao coração da escritora. As reflexões condensadas em breves excertos constituem uma visão inspirada e profunda sobre a vida e a morte, a imortalidade e a existência de Deus. Não há como o negar: são simples apontamentos, mas com uma lucidez e uma força que obrigam o leitor a recolocar-se perante a vida, a sua própria vida. Sem receios, deixemo-nos contaminar por esta “febre”. É benigna e trata-se com a leitura, o melhor de todos os antídotos.




LIVRO: “Karen”,
de Ana Teresa Pereira
Ed. Relógio D'Água Editores, Julho de 2016


Este é um livro que ilustra na perfeição a ideia, mil vezes repetida, de que “quanto mais simples é uma história, maior é a arte de a contar”. Porque “Karen” é uma história simples – um leque reduzido de personagens, espaços perfeitamente demarcados, uma mulher com amnésia após um acidente, aquilo que se insinua como um triângulo amoroso – e porque consegue, através duma escrita engenhosa e particularmente visual, envolver completamente o leitor e obrigá-lo a prolongar o livro para lá da derradeira linha.

Carregando o livro de referências cinéfilas, Ana Teresa Pereira faz questão de nos mostrar ao que vamos logo nas páginas iniciais. Se os nomes de Deborah Kerr, Kathleen Byron, Maria Schell ou Marcello Mastroianni colocam a tónica no cinema, os romances de autores da primeira metade do século XX ou as séries policiais indiciam o carácter misterioso da história. O resto é isso mesmo, a história. Uma bela história, centrada na figura desta mulher que toda a gente trata por Karen mas que rejeita, intimamente, todas as evidências, ao mesmo tempo que assume uma duplicidade perturbadora. É para “Noites Brancas” e Visconti ou “Quando os Sinos Dobram” e Powell e Pressburger que a autora explicitamente remete, mas na realidade é na sombra de Hitchcock e de Daphne du Maurier que seguimos.

Lançado no campo do “thriller”, “Karen” é, todo ele, um manancial de pistas. Constantemente deparamos com apontamentos breves nos quais já tínhamos “tropeçado” algumas páginas atrás. É então que a sensação de “déjà-vu” se torna avassaladora, nela se identificando o leitor com a personagem principal do livro. Página após página, o romance vai-se construindo ao mesmo tempo que a estranheza e a inquietação se vão sedimentando. A dúvida cede lugar ao medo. Levando a tensão ao extremo, Ana Teresa Pereira remata com um golpe de génio, um flashback onde se reforçam semelhanças e percebem diferenças. Terminado o livro, consegue o leitor resistir ao apelo de voltar ao início?




LIVRO: “Índice Médio de Felicidade”,
de David Machado
Edição de Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações D. Quixote, Agosto de 2013


É de felicidade que este livro nos fala. Para além de implícito no título, o conceito derrama-se das suas páginas das mais variadas formas, da felicidade suprema à mais profunda infelicidade. Nele aprendemos a relativizar as coisas, a acreditarmos em nós, a não partirmos derrotados para cada nova batalha. E não, não é (mais) um livro de auto-ajuda. É antes uma ficção muito bem escrita, simples e comovedora, cuja leitura convoca, igualmente, conceitos como simplicidade e sinceridade ou, se quisermos, sensibilidade. Mas vamos por partes.

Comecemos pela felicidade. Será que é possível medi-la? O livro diz-nos que sim (pelo menos, uma das personagens do livro afirma que sim). Não que graduar a felicidade de cada um e compará-la com a dos outros possa mudar o que quer que seja. A subjectividade implícita no próprio conceito joga a favor dos mais cépticos e qualquer argumento em defesa duma escala devidamente parametrizada e que possa constituir-se em referência fidedigna está condenado ao fracasso. E, contudo, o homem moderno precisa disto, vive deste tipo de instrumentos, por mais falíveis que possam ser. No limite, serão uma forma de cada um provar a si próprio que, por muito baixa que esteja a sua auto-estima, a sua saúde, a sua conta bancária ou a sua felicidade, haverá sempre alguém pior ainda. Reflectir sobre a felicidade, a forma como a manipulamos ou somos manipulados, como “contaminamos” os outros ou nos deixamos (ou não) “contaminar”, é um caminho de leitura possível para “Índice Médio de Felicidade”, quiçá o mais desafiante e enriquecedor.

Falando agora de simplicidade, direi apenas que é algo inerente à escrita de David Machado. Porque esta é uma história simples, porque as personagens são simples e porque o escritor não perde o seu tempo com teorias sem sentido (algo que o parágrafo anterior poderia fazer supor). O tempo do livro é o tempo da troika, dum país mergulhado na austeridade e na precariedade, profundamente descrente e triste. É o tempo dum tempo demasiado presente para que os problemas das personagens não possam deixar de ser sentidos como nossos. E, no entanto, por muitas “portas” que se fechem e por muitos “passos” que não levem a lado nenhum, consegue haver sempre alguém com uma crença desmedida num futuro melhor, ainda que o mundo desabe com estrondo à sua volta. E aqui entram, finalmente, os conceitos de sinceridade e de sensibilidade. É que não basta forjar uma história, é necessário torná-la credível, levar o leitor a rever-se nela, a senti-la e a sentir a necessidade de agir. É este o mérito de David Machado e nisto reside a força deste livro extraordinário, um livro que, embora movendo-se num espaço sufocante, não descarta uma palavra de coragem e optimismo. Afectuoso, sensível e motivador, “Índice Médio de Felicidade” é uma lição de vida!




LIVRO: “Nenhuma Verdade se Escreve no Singular”,
de Cláudia Cruz Santos
Ed. Bertrand Editora, Setembro de 2017


Em “Nenhuma Verdade se Escreve no Singular” há carros topo de gama, casas de alterne e whisky barato vendido como se fosse caro. Há histórias de futebol e homens que decidem quem ganha e quem perde. Há negócios escuros, imigração ilegal e máfias do Leste. Há famílias desestruturadas e crianças institucionalizadas. Há juizes e tribunais, arguidos e testemunhas, culpados e absolvidos. E há a prisão, vista como um azar: nuns dias tem-se sorte, noutros não.

É nos corredores da justiça que se passa este romance de estreia de Cláudia Cruz Santos, um livro que fala de liberdade, do seu valor e do seu preço, da sua relevância social, do seu significado individual. Tirando partido da liberdade que a ficção confere, a escritora despe-se de formalismos técnicos e partilha com o leitor comum as suas inquietações, as suas dúvidas e receios, a sua angústia. No viveiro de histórias e memórias que se derramam dum quotidiano fértil, encontra a escritora a matéria-prima para este seu romance, questionando-se – e aos leitores – sobre os méritos e deméritos (mais estes do que aqueles) do sistema judicial português. Ao mesmo tempo, veste o romance duma dimensão pessoal vincadamente auto-biográfica, alicerçada na figura de Amália, uma juíza que vamos conhecendo melhor nas suas longas noites de insónia.

Nesta sua primeira obra, Cláudia Cruz Santos não consegue disfarçar a ansiedade de querer contar tudo o que lhe vai na alma. Do ponto de vista formal, “Nenhuma Verdade se Escreve no Singular” acaba por ser quase um livro de contos, onde até mesmo a história central – a relação de Amália com Marta, uma criança de 13 anos em processo de desinstitucionalização – configura um novo conto e não exactamente o fio condutor do romance, como se pensaria. Há momentos de enorme intensidade e beleza neste livro (as palavras duma mãe que testemunha em favor do filho, jogador de futebol apanhado nas malhas da corrupção é um dos mais impressivos exemplos), mas há também momentos que parecem estar ali a mais (nomeadamente umas férias em Marraquexe). E depois não há nada que prepare o leitor para aquele final, sabendo mais a remedeio que a solução plena. Se as coisas boas do livro não apagam as menos boas, não é menos verdade que há muito de apelativo na escrita de Cláudia Cruz Santos, o que nos obriga a estarmos atentos a esta autora e a aguardar por novo romance.




LIVRO: “Os Loucos da Rua Mazur”,
de João Pinto Coelho
Editor | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Leya, Novembro de 2017


Algures, no Nordeste da Polónia, o horror acontece. Estamos em 1941 e um manicómio é transformado em forno crematório, não por obra do ocupante alemão mas de cristãos polacos. O nome da cidade é propositadamente omitido no livro, mas tanto pode ser Jedwabne como mais de uma vintena de outras localidades onde atrocidades do género foram cometidas, na mesma altura, contra os judeus. Caucionado pela História – que nos vem ensinando que os acontecimentos tendem, ciclicamente, a repetir-se -, “Os Loucos da Rua Mazur”, última obra de ficção de João Pinto Coelho e vencedor do Prémio Leya 2017, acaba por assumir uma faceta profundamente perturbadora, quase premonitória, numa altura em que a Velha Europa - para não irmos mais longe (!) - assiste ao recrudescer dum discurso xenófobo e populista, impulsionado pela ascensão dos partidos de extrema direita.

Toda esta “maquinação do Mal” é narrada a partir dos apontamentos pessoais de dois sobreviventes – um escritor de sucesso e um livreiro cego -, apelando no presente às respectivas memórias e completando os apontamentos um do outro, para que nada fique por contar. Mas a relação entre ambos é tudo menos fácil, como o não era à data dos trágicos acontecimentos. E é aqui que vem ao de cima o brilhantismo da escrita de João Pinto Coelho, abordando duas histórias em paralelo, separadas seis décadas no tempo, mostrando de que forma as tensões e conflitos pessoais se prolongam e acabam por repercutir, na exacta medida, no viver e no sentir duma sociedade cada vez mais dividida.

Este é um daqueles livros que se lêem em constante sobressalto. De cada vez que pensamos que o pior já passou, percebemos que, afinal, ainda está para vir. Aqui “as costas não folgam pelo vai e vem do pau”. Os momentos de trégua aparente desvendam, afinal, pequenas peças soltas dum puzzle que acabará por rebentar em mil estilhaços, de dor e raiva feitos. E porquê?, perguntar-se-á. Que gene é este que já nasce com o homem e o leva a atentar contra o seu semelhante da forma mais vil e cruel? Com que motivação? Em nome de quê? Entre todas as virtudes deste magnífico livro, talvez a forma como nos confronta com estas questões seja o mais relevante. Através dele, vamos ao encontro do que fomos para descobrirmos, em sobressalto, quem somos. Porventura, será este o grande argumento que faz de “Os Loucos da Rua Mazur” uma obra de leitura obrigatória!




TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com Álvaro Domingues
Museu de Ovar
24 Fev 2018 | sab | 21:30


Se de utilidade falamos quando falamos de “Conversas Úteis” - conjunto de tertúlias promovidas com espantosa regularidade pelo Museu de Ovar em torno de livros, autores e leitores -, então o capítulo mais recente destes encontros terá batido aos pontos os demais. Tendo o seu novo livro, “Volta a Portugal”, como ponto de partida, Álvaro Domingues deu uma verdadeira aula sobre o território português, desconstruindo a ideia do país-mosaico e desmontando os clichés habituais que concorrem para a ideia (impingida) de unidade territorial. Fê-lo apoiando-se num discurso esclarecido e extraordinariamente acessível e ainda em fotografias da sua autoria, convidando o público a refletir sobre o muito que se esconde por detrás de cada imagem, de cada mensagem.

Esta utilidade foi tanto mais útil, passe o pleonasmo, quanto a leitura que havia feito do livro não gerara em mim grandes entusiasmos. Houve, assim, a possibilidade de perceber um objectivo fundamental de Álvaro Domingues ao escrever o livro: Transportar o leitor para uma determinada ambiência, oferecer-lhe ferramentas para compreender aquilo que se esconde por detrás das palavras e das imagens, conceder-lhe total liberdade para relacionar as coisas entre si e esperar que seja ele a encontrar a unidade do livro. “Volta a Portugal” é, pois, uma “obra aberta”, aberta a várias leituras, a vários sentidos, assente numa escrita hipertextual, visto ser esta “a que melhor se adapta ao estilo e aos motivos do livro”. Entendidas assim as coisas, importa um regresso à leitura de “Volta a Portugal” para tirar teimas.

Ao longo de duas horas que passaram num ápice falou-se, entre muitas outras coisas, da estranheza desta nova vida na esfera dos livros - “tenho alguma dificuldade em ouvir as pessoas dizerem que sou escritor” - e do desassossego dum professor de Geografia a dar aulas numa Faculdade de Arquitectura. Falou-se de textos que remontam ao Século XVI e de fotografias ao encontro dos “emissores de sinais” que são “aquelas gentes que habitam aquelas terras”. Falou-se da relação poética “cidade-campo” ser, na realidade, uma relação de “poder-dominação” e da urbanização ser, à escala planetária, “o grau zero da condição humana”. Também de toiros bravos e de puro Ribatejo, de framboesas e de Nepaleses, de burros que já não puxam carroças e passaram a ser meros elementos decorativos, de faianças e camelos, de papoilas e morangos e ópio e Beatles. Ainda de globalização e de desterritorialização - “essa palavra estranha para um geógrafo” -, do rural versus o neo-rural, duma paisagem que existe para ser mudada e dum Portugal pós-moderno que nunca chegou a ser moderno. E falou-se de “Entre nós... da auto-estrada”, um livro que vem a caminho e onde iremos “tentar perceber como é que um dispositivo socio-técnico tão performativo influencia o território, o espaço e a paisagem”. Vamos estar atentos!




LIVRO: “Manobras de Guerrilha”, 
de Bruno Vieira Amaral
Quetzal Editores, Janeiro de 2018


É sob um manto pretensamente belicista que descubro o mais recente livro de Bruno Vieira Amaral. Ao remeter para acções não convencionais, grande mobilidade e muito jogo psicológico, “Manobras de Guerrilha” é isso tudo mas também o seu contrário. Desde logo porque, ao acrescentar o subtítulo “Pugilistas, Pokémons & Génios”, o autor desdramatiza o conceito, ao mesmo tempo que coloca uma nota de estranheza na equação. E depois há essa bela capa, ao estilo da Banda Desenhada, que evoca a “nobre arte” e põe os pontos nos ii. Na arte e no respeito – e nunca na violência – coloca o autor a tónica deste livro, nos quais os punhos têm a força da escrita e o resultado final deve muito mais à cabeça (leia-se, “inteligência”) que a esse bailado delirante de pés e mãos em sintonia, corpo contra corpo, em “rounds” de três minutos.

“… Plim”. A campainha soa e o combate tem início. O ato solitário em busca da superação no ringue é agora o da leitura, feita de “emboscadas”, “avanços no terreno” e “campo aberto”. O primeiro golpe (“Chalana, como peixe na água”) é logo um “murro no estômago”. Outros se seguirão, do “uppercut” aos queixos de Toni Bentley, uma “Santa Teresa de Ávila do sexo anal”, ao gancho no fígado de Susan Sontag, em defesa de Camus. Subtil, mordaz, eloquente, magnânime, jocoso, camaleónico, irónico, contundente, Bruno Vieira Amaral discorre sobre as diferenças entre Messi e Maradona com o mesmo à vontade com que transforma em saco de boxe uma humanidade esquecida da decência. Tanto o vemos em passinhos de filigrana a “caminhar entre ruínas” como partimos com ele à caça de Pókemons pelas ruas do Barreiro ou subimos o Monte Farinha para assistir à chegada da caravana da Volta.

Em Bruno Vieira Amaral, a escrita é uma arte. Que pode ser dura, sim, mas é sempre digna e nobre. E é essa arte – que tem um nome, porque um estilo: o do autor – que resulta na argamassa que torna coeso o conjunto de 26 textos selecionados a partir de publicações em orgãos tão respeitados quanto díspares: Observador, LER, Circo da Lama, Blimunda, Expresso Diário, Malomil, Público, Orgia Literária e GQ. Nas crónicas de viagem como nas críticas literárias, por exemplo, o autor deixa a sua marca inconfundível, a mesma que já encontrávamos em “As Primeiras Coisas” e se prolongou, depois, no litúrgico “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”. É esse seu estilo, o seu “eu” literário, que leva a que “Manobras de Guerrilha” seja mais um momento inefável de partilha, de cumplicidade. Assim como uma família unida em torno de um par de luvas.




LIVRO: “Volta a Portugal”,
de Álvaro Domingues
Ed. Contraponto, Novembro de 2017


De estranheza se faz a leitura de “Volta a Portugal”. A causa, essa, estará certamente no facto de o cérebro estar “formatado” para a ficção e de nela nada haver de comparável ao livro de Álvaro Domingues. Aliás, “Volta a Portugal” é, na essência, um livro anti-ficção, honestamente empenhado em desmontar a “ficção” do “todo que nunca houve” e, de passagem, assentar umas valentes bordoadas nos mitos que persistem em fazer da Pátria “a grande árvore de Natal do velho mundo carregada de brinquedos divinos”, seja lá o que isso for.

Com uma estrutura simples, o livro percorre Portugal de lés a lés, tendo a Serra da Estrela como ponto de partida e terminando nas Ilhas. Pelo meio convida-nos a visitar o Minho, o Ribatejo e o Algarve, o Alentejo, Trás-Os-Montes e o Douro, também a Ria de Aveiro, ainda a região do Oeste, a “falecida Estremadura”. Cada capítulo é alvo duma apreciação do autor em jeito de preâmbulo, uma espécie de inventário das regiões, no que de bom e de mau nelas se pode achar. Há também uma parte essencialmente visual, espécie de “fundamentação da tese”, com belíssimas fotografias do próprio Álvaro Domingues, legendadas com um toque de humor requintado. Finalmente, uma recolha de textos e poemas alusivos a cada uma das fotografias, completando o todo de forma mais ou menos discursiva.

Perante tamanha “hibridização”, chamado a dar o veredicto, quedo-me pelo “nim” e explico porquê. Retire-se do livro a sua componente fotográfica e a recolha de textos que a acompanham e teremos aquilo a que chamaria o trabalho de escrita do autor, ou seja, os argumentos de cariz exclusivamente pessoal em que assenta esta sua “desconstrução da paisagem”. Ficamos, assim, com pouco mais de duas dúzias de páginas (num livro que ultrapassa as trezentas), sem dúvida bem escritas – ainda que a fórmula da inventariação dos atributos de cada região se esgote ao fim de um par de capítulos - mas que sabem a pouco face ao muito que haveria por dizer. Direi que é nas imagens que reside a grande força desta “Volta a Portugal”, o que me leva a tirar o chapéu ao Álvaro Domingues fotógrafo, que não ao Álvaro Domingues literato. Talvez preferisse mesmo ver este livro sob a forma de álbum fotográfico, as mais de duas centenas de imagens destacadas da forma que bem mereceriam, as legendas geniais e as considerações do autor num belo Prólogo. Assim, tal como o vi, devo confessar que não fiquei fã.




LIVRO: “O Homem Que Escrevia Azulejos”,
de Álvaro Laborinho Lúcio
Ed. Quetzal Editores, Setembro de 2016


Há Marcel e há Norberto (ou será Lourenço?). Os tempos são os do Maio de 68 como podem ser os de Abril de 74 ou outros. Na cumplicidade do gesto e do olhar, na dialética duma certa clandestinidade mais ou menos declarada, com doze cervejas em cima duma mesa que vai fugindo para a periferia, se fundem liberdade, fraternidade e igualdade, se fundem poderes e contra-poderes, recordações dolorosas, buscas incessantes e paixões utópicas. Julio Cortázar e Johann Wolfgang Goethe espiam discretamente. Enquanto isso, Otília narra a longa história do avô João Francisco, professor de violino.

Basta um leve debruçar sobre o Prólogo e ficamos a saber ao que vamos. Nele, Álvaro Laborinho Lúcio dá conta da sua disposição em reunir, por interposta pessoa, os pedaços de vida dos seus personagens, azulejos escritos que se irão ajustando até formarem um painel. Perceber-se-á, entretanto, que de dois painéis se trata neste livro e não um, belíssimos na sua concepção embora frios na essência. Também se confirmará aquilo que os pressupostos faziam adivinhar: que cada um dos painéis, no seu todo, virá a mostrar-se maior do que a soma das partes que o compõem. Mas isso já será trabalho que se exige ao leitor, o de sentir o ténue pulsar de vida que se esconde na “argamassa” que une cada azulejo e garante ao conjunto uma instável firmeza.

Da leitura de “O Homem Que Escrevia Azulejos” sobra essa sensação de desconcerto que não se confina ao título. Sente-se que estamos perante um bom livro – uma escrita escorreita, uma narrativa forte -, mas sente-se também que falta ali algo. Creio que um menor distanciamento do escritor em relação às personagens seria capaz de mitigar a dúvida. Supostamente, tão rica matéria-prima deveria fazer vibrar mais as cordas do coração, que não tanto as da razão. Não há poesia que se derrame deste livro. O seu brilho não aquece. É belo mas é frio. Como sói ser da natureza dos azulejos!




TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com António Canteiro
Museu de Ovar
20 Jan 2018 | sab | 21:30

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Com a festa na rua em noite de abertura do Carnaval de Ovar, foi no aconchego da Sala dos Fundadores do Museu de Ovar que se fez a verdadeira festa, a da palavra, a que alimenta o espírito e faz viver. António Canteiro foi o convidado de honra desta primeira sessão de 2018 do “Conversas Úteis”, tertúlia à roda dos livros, como de costume moderada por Carlos Nuno Granja. Nela, o autor falou dos seus romances, do processo criativo que a eles preside, mas sobretudo das suas experiências de vida, dos momentos de alguma forma marcantes e que se encontram na génese das suas histórias, da sua poesia. “Os escritores são ladrões”, referiu a este propósito, dando como exemplo o seu último romance, “A Luz vem das Pedras”, nascido em 2012, em grande medida surgido de uma história escutada a uma idosa de S. Caetano, Cantanhede, a sua terra natal. Outro exemplo advém do seu trabalho como Técnico Superior de Reinserção Social no Estabelecimento Prisional de Aveiro, com a consulta das peças processuais a poderem dar um valioso contributo à ficção que faz. “O António Canteiro vive muito do João Cruz enquanto Técnico”, remata.

Escrevo os livros aos bocados e depois junto-os todos e dou-lhes lógica, coerência”, refere o autor a propósito dum processo de escrita que pode, nesta fase crucial de, “das partes, dar forma ao todo”, “demorar um mês, um mês e meio”. “A escrita vai-se fazendo; o labor é infinito”, sublinha. Mas é nas partes que se detém, relevando a importância de ouvir as histórias e de ajustar por palavras aquilo que é o dia a dia. Designa isso por “invenção a partir do real” e, da mesma forma, define a sua escrita como “ficção para além do real”, confessando que “um romance escreve-se ao longo dos anos e a partir de muitas experiências de vida”.

Com a sessão a caminhar para o fim, tempo para falar de poesia, um assunto tão grato ao escritor. E logo uma revelação: “Tento meter poesia na prosa, sob a forma de uma carta escrita, por exemplo.” Como que a sublinhar as suas palavras, lê um excerto de “A Luz vem das Pedras”, precioso pedacinho de prosa que acabou por ganhar a sua “emancipação”, indo integrar “Na Luz das Janelas Pestanejam as Sombras”, o seu livro de poemas que, em 2015, foi galardoado com o Prémio de Poesia Bocage. Tempo ainda para confidenciar ao auditório que “ouvir as histórias aos outros é uma forma de os libertar dum peso que carregam, da mesma maneira que verter essas mesmas histórias nas páginas dos meus livros funciona, para mim, como uma libertação”. Daí que, um dia, não irá perder tempo a escrever as suas memórias: “Os meus livros são as minhas memórias, todos eles são um registo das coisas que me acompanham”, conclui.


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António Canteiro, pseudónimo literário de João Carlos Costa da Cruz, nasceu em 11 de Outubro de 1964 na freguesia de S. Caetano, concelho de Cantanhede. Técnico Superior de Reinserção no Estabelecimento Prisional de Aveiro, inicia atividade literária em 2005, com “Parede de Adobo”, Menção Honrosa do Prémio Carlos de Oliveira; “Ao Redor dos Muros”(Gradiva) venceu o Prémio Alves Redol, em 2009; “Largo da Capella” (Gradiva) obteve a Menção Honrosa do Prémio João Gaspar Simões, em 2011; “O Silêncio Solar das Manhãs” (Gradiva) foi Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, em 2013; “Logo À Tarde Vai Estar Frio” (Gradiva) foi Menção Especial do Júri, no Prémio João José Cochofel / Casa da Escrita de Coimbra, em 2013, e acabaria por vencer o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, em 2015; “Na Luz das Janelas Pestanejam as Sombras” (ed. LASA) foi Prémio de Poesia do Bocage, em 2015; o seu último romance, “A Luz Vem das Pedras” (Gradiva), publicado em 2017, venceu em 2015 o Prémio Alves Redol.




LIVRO: “A Luz Vem das Pedras”,
de António Canteiro
Edição de Guilherme Valente
Ed. Gradiva, Junho de 2017


... E, de repente, vemo-nos desejosos de chegar a casa ainda mais depressa para voltarmos a virar cada uma das suas folhas, a sorver-lhe cada palavra, de tão intenso, de tão rico de imagens e de cores e de gostos e de cheiros, de inquietações e de tristeza, de tão nosso que é. Queremos beber as suas expressões, os seus gestos, a sua poesia de novo e outra vez ainda. Vem isto a propósito de António Canteiro e do seu mais recente romance, “A Luz Vem das Pedras”, visão encantatória de vida amargurada, de pobreza e solidão, duma mulher que tem na escrita “numa folha de papel de trinta e cinco linhas”, nos livros que lhe servem de companhia e nos cães os únicos lenitivos.

É a suprema felicidade termos alguém que partilhe algo de tão sublime assim, onde tudo o que nos é dado a ler se adequa aos olhos da imaginação, ganha forma e cor, ganha vida. Vida que convoca a nossa própria vida, o nosso percurso desde que nos conhecemos, neste continuum do sermos, existirmos, escrevermos, dormirmos e amarmos. No seu jeito delicado de contar as coisas, António Canteiro consegue esse milagre de nos tornar parte integrante do livro, de tal forma a descrição dos sentimentos e estados de alma nos apazigua ou nos fere.

A Luz Vem das Pedras” é, seguramente, um dos livros que, até hoje, mais me impressionou pela qualidade da escrita. Aquilo é orgânico, sente-se, vive-se. É barro e chão e terra e vento e rocha viva. Aquilo é o toque duns braços de mãe enleados à volta do meu pescoço para entalar o pano, que há-de servir de guardanapo, babete, para não sujar o pijama dos restos de sopa. Aquilo é a cor doce dos bolos na boca, é Deus a escrever direito por linhas tortas, são adjectivos estranhamente familiares (vagarosolenta, chuvernoso, esperandante, estreluzente), são lágrimas duma dor feita de desassossego, ódio e raiva, é tanta coisa que já nem tenho a certeza do que é. Duma coisa, porém, estou certo: A história não acaba aqui. “A Luz vem das Pedras” é um livro que me vai acompanhar por muito tempo, pelos anos, pelo sempre!




LIVRO: “A Noite não É Eterna”,
de Ana Cristina Silva
Edição de Maria do Rosário Pedreira
Ed. Oficina do Livro, Fevereiro de 2016


É ao encontro duma Roménia imune aos ventos da Perestroika que Ana Cristina Silva nos leva no seu livro “A Noite não é Eterna”. Nadia, uma jovem mulher, vem de perder o filho em circunstâncias particularmente dramáticas e obstina-se na sua sede de vingança, tendo como alvo o próprio marido, Paul. Do descontrolo inicial à racionalidade dos momentos seguintes, a mulher vê-se dividida entre a raiva e a impotência, tendo como pano de fundo o regime sanguinário e totalitarista do ditador Nicolae Ceauşescu.

A Noite não é Eterna” é um romance negro, tanto na sua aproximação literária ao sub-género do suspense, como nas emoções que o percorrem, pontuadas pela dor e pelo luto. Personificando em Nadia o vazio de todos quantos se viram despojados daquilo que tinham de mais íntimo e querido, Ana Cristina Silva leva mais longe o romance, ampliando essa sensação de angústia e sofrimento ao enumerar as arbitrariedades dum regime cujas elites tinham acesso a bens importados e viviam em edifícios de grande ostentação e onde a população sobrevivia em miséria evidente e as crianças eram abandonadas à sua sorte em orfanatos, antecâmaras de doença e morte.

Desta abordagem da situação social e política da Roménia da era Ceauşescu, retira o livro uma das suas maiores forças. O lado documental, porém, é claramente secundário num romance que se foca quase por inteiro na mulher e em cuja figura a escritora refina laboriosamente o arquétipo da “mãe-coragem”, capaz de levar os seus propósitos até às últimas consequências. Para tanto, Nadia aceita correr os mais terríveis riscos, enquanto na sua boca se repete até à exaustão a palavra “filho”. E contudo...

Não querendo desvendar a trama – sobretudo porque penso que este livro merece ser lido -, diria apenas que gostaria de ver certas ideias desenvolvidas de forma mais consistente. Que preferiria perceber na íntegra o percurso de personagens deveras importantes em determinados momentos da acção e que acabam por desaparecer sem deixar rasto. E que gostaria de entender melhor as motivações de Nadia ao travestir-se duma certa moralidade, recuando a memórias do tempo da infância e dispondo-se a perdoar o imperdoável.




LIVRO: “O Último Beijo da Mamba Verde”,
de Cesário Borga
Ed. Planeta, Setembro de 2017


O Último Beijo da Mamba Verde” é uma história de vingança, nos anos amargos da Guerra do Ultramar. Centrando a acção no Norte de Moçambique, o livro descreve uma sequência de episódios que têm Arnaldo Salima como personagem principal. Cantineiro junto ao aquartelamento das tropas portuguesas em Tomboza, próximo da fronteira com a Rodésia (atual Zimbabwe), é ele o protagonista duma história onde amor e morte se passeiam de mãos dadas.

Com uma escrita fácil, na qual avulta a reprodução cuidada dum certo linguajar nas margens do português, Cesário Borga dá a ver a face mais negra duma guerra sem razão. Exímio na forma como trabalha a acção, o autor faz-nos mergulhar nos cenários idílicos de África, nas suas riquezas naturais e na forma de vida dos povos do Norte de Moçambique, para depois nos despertar, de forma brusca, para o horror das minas e dos corpos decepados, do ruído surdo das pás dos helicópteros rodesianos e dos bombardeamentos, do cerco às aldeias e dos esbirros da PIDE, do fogo nas palhotas e do cheiro a carne queimada.

Ao contrário da generalidade dos escritores portugueses que se vêm debruçando sobre esta matéria, interessa a Cesário Borga o efeito da Guerra sobre os que ficaram em África e de que forma os acontecimentos foram determinantes nas suas vidas. Nesse sentido, “O Último Beijo da Mamba Verde” não é apenas mais um livro sobre um capítulo particularmente sombrio da nossa história colectiva. Ele é um testemunho sólido da violência e do horror em cenário de guerra, tendo como principais protagonistas as tropas portuguesas, a sua crueldade, insensibilidade e irracionalidade, à imagem e semelhança das tropas congéneres. A outra face duma mesma moeda que não adianta fazer de conta que nunca existiu.




LIVRO: “De zero a dez”,
de Margarida Fonseca Santos
Ed. Clube do Autor, Abril de 2014


Tentei desfazer-me da condição de Enfermeiro ao ler “De zero a dez”. Encontrei, logo nas páginas iniciais, testemunhos do quotidiano que me são próximos e procurei distanciar-me deles. Talvez quisesse perceber até que ponto o livro era dirigido a um público-alvo mais vasto, que não apenas aquele que, directa ou indirectamente, lida com a doença (doentes, profissionais de saúde, famílias, amigos mais chegados). De boas intenções está o inferno cheio e o esforço revelou-se inútil, mas daí não vem qualquer mal ao mundo. Poderei ter prestado mais atenção aos aspectos técnicos, admito ter achado algumas passagens desinteressantes e mesmo lamechas, mas a vida não é só empolgamento. E, depois, senti alguns abanões do género “ora aqui está uma coisa que sabes que é assim, mas da qual por vezes te esqueces”. E isso tenho de agradecer à Margarida Fonseca Santos.

De zero a dez” remete para a Escala de Dor, uma ferramenta usada para “medir” a dor e o desconforto causados pela doença e a forma como são percepcionados por cada pessoa. Falar numa dor “9 em 10” significa estar às portas do insuportável, enquanto “1 em 10” revela que a dor praticamente não existe. É deveras interessante a forma como a escritora intitula cada capítulo, começando pelo “9 em 10” e decrescendo à medida que o livro avança. As personagens são as mesmas, a doença é a mesma, a agudização da doença continua a acontecer a espaços, mas o desconhecimento e a dúvida, a raiva contra a doença e a auto-comiseração, tão presentes nesse primeiro capítulo, vão cedendo espaço ao auto-controlo, ao domínio da doença e das crises a ela associadas, a isso não sendo indiferentes o médico certo, o patrão certo, o companheiro certo, os amigos certos. As ajudas certas.

Narrado a várias vozes, “De zero a dez” é também um convite ao leitor a que meça o seu grau de conforto face aqueles que o rodeiam e que, tantas vezes sem o revelarem, precisam de ajuda. De forma subtil, Margarida Fonseca Santos abre o leque dos pequenos-nadas, sinais de alerta que podem significar pedidos de ajuda, aos quais importa estar atentos. Somatório de experiências pessoais, o livro pode ser visto como um guia para lidar com a Artrite Reumatóide e outras doenças degenerativas. Tanto mostra o que de errado há em reduzir, por iniciativa própria, as doses de medicação, como indica o nome das associações que existem e que podem constituir uma ajuda preciosa. Tanto “mexe” no Código do Trabalho como lembra que, apesar da doença, a vida continua. E fá-lo de maneira simples e particularmente eficaz.

Os exemplos de Leonor e a forma como se articula com as pessoas mais chegadas fornecem pistas importantes, não apenas para quem sofre da doença, mas também para os profissionais de saúde, os familiares e amigos. E sendo esta é uma doença que, como tantas outras, não se faz anunciar, o leque de destinatários de livro acaba por não excluir ninguém. Porque as coisas não acontecem só aos outros!...




LIVRO: “Biografia Involuntária dos Amantes,
de João Tordo
Edição | Clara Capitão
Ed. Alfaguara, Abril 2014


Conseguimos ver nesta “Biografia Involuntária dos Amantes” uma fábula da condição humana, naquilo que contempla de mais precário. Com minúcia de detective, João Tordo faz-nos seguir no rasto uns dos outros, dando a ver os nossos próprios passos, incertos, hesitantes, atabalhoados, ao encontro de amores desencontrados, sonhos frustrados, existências perdidas. Peões num tabuleiro de linhas tortas e quadrículas imperfeitas, navegantes sem norte nas mãos da fortuna, somos convidados a jogar o jogo do Eu na descoberta do que fomos, de quem somos.

É na mó de baixo que vamos encontrar as duas personagens principais deste livro, dois homens tomados pelo desânimo, descrentes de si mesmos e do mundo que os rodeia. Cedo compreenderemos que esta condição de miséria interior só em parte é sobreponível a ambos, já que um deles perdeu-se em absoluto de si mesmo, cabendo ao outro resgatá-lo (e resgatar-se). Em busca da redenção, mergulhamos num universo subversivo habitado por uma mulher, ao mesmo tempo frágil e forte, revelando a sua faceta obscura, destruidora, fatal.

Na complexidade das personagens e nas suas motivações dificilmente escrutináveis, reside o fascínio deste livro. Nesta anatomia do pesadelo, João Tordo não depura ou concentra até alcançar a fórmula perfeita, aquela que responde aos problemas de todos e de cada um; antes abre, expande e explora sensações, sem medo de soar a excessivo. O romantismo chega a parecer ridículo, a perversão é uma comédia, o sexo é violento. As paixões derramam-se no fio da navalha. Tudo é incerto, inesperado. Como um javali que corre para a morte, ao encontro dum carro a grande velocidade em plena auto-estrada.




TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com João Tordo
Museu de Ovar
09 Dez 2017 | sab | 21:30


Continuando a apostar na diversificação da oferta cultural da cidade, o Museu de Ovar trouxe até nós o escritor João Tordo para um momento único de “conversas úteis”. Mais uma oportunidade para conhecermos o homem e o escritor, naquilo que tem de metódico e de racional no que à escrita diz respeito, e que admitiu ter na preguiça um dos seus grandes defeitos. Carlos Nuno Granja foi, de novo, o moderador desta tertúlia, naquela que constituiu a segunda presença do escritor entre nós, uma vez que já nos tinha dado o prazer da sua companhia em 12 de Abril de 2014, a propósito do romance “Biografia Involuntária dos Amantes”. Entretanto, João Tordo teve a oportunidade de publicar uma trilogia composta pelos romances “O Luto de Elias Gro” e “O Paraíso Segundo Lars D”, ambos de 2015 e, já em Maio deste ano, “O Deslumbre de Cecília Fluss”. Ora, foi precisamente este último livro o pretexto para a presença do escritor entre nós na noite de sábado. Conforme veremos, porém, nem só do “Deslumbre...” se falou neste serão que se prolongou para lá da meia noite.

Perante uma plateia atenta, conhecedora e interventiva, ainda que escassa em número, João Tordo começou por se afirmar um “romancista” e por fazer a distinção entre os romancistas e os escritores de outros géneros da literatura. Para tal, socorreu-se duma parábola do antigo Japão, segundo a qual “dois amigos caminham até ao Monte Fuji para comprovar a sua grandiosidade. Finalmente chegados ao sopé, um dos amigos olha para cima e, convencido da grandiosidade e imponência do Monte, prepara-se para regressar. O outro, porém, não ficou convencido e, enfrentando toda a sorte de desafios, escalou o Monte, só então se rendendo à evidência”. “O romancista é aquele que sobe o monte”, concluiu João Tordo, acrescentando que tal propósito perante os livros implica “inteligência lenta e uma enorme resistência para continuar a escrever romances”.

Para João Tordo, “os livros são o momento”, admitindo que “se tivesse de voltar ao princípio das coisas já não seria capaz de escrevê-las da mesma maneira”. “Quando se fala de romances, fala-se de histórias; mas eu acho que, mais do que histórias, deveríamos falar de vozes”, diz, acrescentando que “escrever é deixar que todas as vozes que temos dentro de nós venham ao de cima e falem”. Considerando que “temos em Portugal literatura que é só linguagem e livros que são só história, sendo estes os best-sellers, os que vendem”, João Tordo vinca que “o mais difícil de alcançar é aquilo que está no meio, o equilíbrio entre uma história que se quer contar e o domínio da linguagem”. Já no período de perguntas e respostas, viria a enunciar Afonso Cruz, David Machado, Gonçalo M. Tavares, Alexandra Lucas Coelho, Patrícia Portela, o incontornável José Saramago e, “para mim o maior de todos”, José Cardoso Pires, como exemplos de escritores que conseguem alcançar este equilíbrio. João Tordo falou ainda do Prémio Literário José Saramago, em 2009, um marco importante na sua vida literária, um autêntico ponto de viragem em termos de projeção e de livros vendidos (com as mãos faz um gesto que indica que, se antes vendia “oito”, passou a vender “oitenta”), mas também um Prémio que fez dele, demasiado de repente, uma figura pública, para a qual não estava preparado.

Mas porque “O Deslumbre de Cecília Fluss” era o pretexto para estarmos ali, o romancista levantou uma pontinha do véu e confidenciou que “o eixo da história é um tio, Elias – “que não é o Elias Gro do primeiro livro da trilogia” -, um tipo enlouquecido que vive com dois cães, o Vivo e o Morto e que tem um hamster chamado Coma. Elias tem uma relação muito forte com o sobrinho, de 14 anos, e que é o narrador desta história. As partes em que o livro toca a relação entre tio e sobrinho são as partes emocionais do livro”. Não deixa de ser curioso que o livro abra com a citação “pequena é a parte da vida que vivemos”, de Séneca, e que motiva uma última reflexão: “É fácil fugir ao caminho. O Facebook e o Futebol são coisas que fazem parte da vida, mas não são fundamentais. Se lhes damos demasiada importância, corremos o risco de passarmos a vida na periferia daquilo que ela deveria ser. É por isso que digo a mim mesmo que a vida é curta e que um dia vou morrer. E eu, que sou estóico, lá volto para a secretária de regresso à escrita, em vez de ficar para ali a ver o Trio de Ataque”.

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Nascido em Lisboa em 28 de Agosto de 1975, João Tordo formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova Iorque. Estreou-se na escrita em 2004 com o romance “O Livro dos Homens Sem Luz”, tendo sido galardoado com o Prémio Literário José Saramago 2009 com “As Três Vidas”, o seu terceiro romance, publicado no ano anterior. Da lista de livros publicados em 14 anos de dedicação à escrita, fazem parte ainda “Hotel Memória” (2007), “O Bom Inverno” (2010), “Anatomia dos Mártires” (2011), “O Ano Sabático” (2013) e “Biografia Involuntária dos Amantes (2014), para além dos livros da trilogia anteriormente mencionados.




LIVRO: “Hoje estarás comigo no paraíso”,
de Bruno Vieira Amaral
Ed. Quetzal Editores, Abril de 2017


É difícil catalogar “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”, de tal forma se constitui numa imensa parábola bíblica sobre a condição humana. A sua dimensão espiritual não se resume ao título, antes se espalha pelas páginas do livro, recuperando histórias da Bíblia, citando as Escrituras ou transpondo um certo imaginário religioso para as personagens, elevando-as aos céus num sopro de redenção ou, mais frequentemente, fazendo-as perigar à beira do abismo, até se perderem irremediavelmente numa eternidade feita de trevas e ranger de dentes. É um livro que nos leva por caminhos insondáveis, ao encontro de pessoas, lugares, acções que, sendo de outros, são nossos também. Um livro que nos confronta com aquilo que temos de mais obscuro, de mais dificilmente explicável e em relação ao qual as respostas se fundam no domínio da fé.

Partindo dum todo, “Hoje Estarás Comigo no Paraíso” é um livro que se vai fechando sobre si mesmo, até resumir o seu universo ao de uma figura apenas, Bruno Vieira Amaral, ele próprio, autor e narrador do livro. É este o desfecho dum projeto baseado na investigação da morte dum primo, João Jorge Rego, barbaramente assassinado numa noite de Fevereiro de 1985, tinha o escritor 6 anos de idade. Um livro que bascula entre o real e a ficção, fundindo frequentemente ambos os conceitos. E também um livro que é como uma liturgia, ao transpor para o momento presente um ritual de entrega e sacrifício para a salvação da Humanidade. Na qual o autor se inclui. E nós com ele!

Hoje Estarás Comigo no Paraíso” é uma “via dolorosa”, a qual Bruno Vieira Amaral aceita percorrer, apesar da dúvida (“Estaria preparado para os obstáculos e, acima de tudo, para as revelações que haveriam de surgir com o tempo?”, interroga-se o autor a páginas tantas). Dos primeiros anos num bairro da Margem Sul - Sodoma e Gomorra dum tempo hoje - às hortas a caminho da Vila Chã, onde João Jorge foi morto, é todo um caminho de duras revelações que é trilhado. Vertendo para o romance o fruto duma memória prodigiosa (ou será esta memória apenas uma “engenhoca”, a parte ficcionada dum trabalho exaustivo de investigação e pesquisa?), o escritor caracteriza, com detalhe de retratista, todo um universo de personagens bem reais, visitando lugares que acabarão por se estender muito para além das margens do Bairro e que irão desembocar numa Angola em permanente convulsão. Em busca da redenção, as revelações serão como açoites, os espinhos cravar-se-ão cada vez mais fundo na carne. Mais forte do que todas as dúvidas, restará, no final, uma certeza. Caberá ao leitor entende-la e acreditar nela!




LIVRO: “Orlando e o Rinoceronte”,
de Alexandra Lucas Coelho
Ilustrações de Alexandra Lucas Coelho
Ed. Alfaguara, Outubro de 2017


Confesso que nem sempre foi assim, esta minha admiração pela chamada literatura infantil, infanto-juvenil ou o que lhe quiserem chamar. A razão para esta mudança está em livros como “Orlando e o Rinoceronte”, de Alexandra Lucas Coelho, e cuja leitura resulta em momentos de deleite e fruição de pequenos prazeres e grandes aventuras, muitas delas “irmãs gémeas” das que preservamos na memória e que remetem para infâncias felizes.

Gostaria de notar que “Orlando e o Rinoceronte” é um livro “a sério”. Quero com isto dizer que o seu formato “reduzido” (se comparado com a generalidade dos exemplares da “concorrência”), as suas mais de cem páginas (!) e a relativa escassez de desenhos, faz com que o seu apelo esteja mais no conteúdo, que não na forma. Daí que a dedicatória “para os meus sobrinhos Maria, Mariana, Matias e Nuno e para todos os que vão mudar o mundo” faça todo o sentido. Os meninos e meninas dispostos a aceitar o convite à leitura de “Orlando e o Rinoceronte” que se preparem para a realidade que os espera: Vocês vão MESMO mudar o mundo!

Orlando e o Rinoceronte” leva-nos a conhecer Orlando, olhos abertos para o mundo do alto dos seus oito anos, mas também Ganda e a sua história trágico-marítima, por obra e graça da estupidez e do egoísmo dos homens. Faz igualmente com que nos lembremos que encontrar a pessoa certa para nos falar das coisas é mil vezes melhor do que ir procurar ao Google; e que o conceito de Portugalidade e de escravatura estão ligados e não são coisa de que nos possamos orgulhar. Entre outras, também nos alerta para a ideia subjacente aos Descobrimentos e mostra que, afinal, as coisas podem não ser bem como nos contam. “Coisas sérias” à parte, este livro fez-me, sobretudo, fechar os olhos com força e, nas estrelas por cujo brilho me deixei levar, jogar de novo às caricas no pátio tornado estádio todas as tardes de todas as férias, acompanhar o meu pai nas pescarias de tainhas numa ria imensamente bela e despoluída, deliciar-me com o sabor levemente acidulado da broa que a D. Laurinda cozia, passar tardes inteiras a ler em voz alta para a minha mãe enquanto ela fazia renda, penetrar nas sombras misteriosas do Pinhal do Gato Morto, o corpo a tremer colado ao da Tia Matilde, ou sentir-me livre como nunca, correndo no meio do feno alto ao cair duma tarde de Verão.




LIVRO: “E a Noite Roda”,
de Alexandra Lucas Coelho
Ed. Companhia das Letras, Maio de 2017


Naquele início de Novembro de 2004, o Mundo está suspenso do estado agónico de Yasser Arafat. É neste contexto que a vida de dois jornalistas se cruza em Jerusalém. O que daí advém revelar-se-á muito mais que uma história de amor. Em permanente “estado de sítio”, a vida de ambos como que irá mimetizar a instabilidade política que se vive naquela zona do globo. As manobras de diversão suceder-se-ão, assim como os cessar-fogo. Os danos ir-se-ão avolumando, ameaçando tornar-se irreparáveis. Até que em Dezembro de 2006 fica tudo escuro.

Alexandra Lucas Coelho sabe realmente escrever. E que bem que escreve. A sua escrita é rápida, telegráfica. Não são necessárias mais do que duas ou três “pinceladas” para que todo um quadro se abra, nítido, aos nossos olhos. Obrigando o leitor a mergulhar no desprazer e no sobressalto face à objectividade com que aborda o conflito israelo-palestiniano, logo de seguida vem “resgatá-lo”, levando-o de mãos dadas a vaguear ao redor da Notre-Dame de Paris, a procurar um casaco nos corredores do Vaticano ou a provar um queijo Garrotxa numa casa com vista para os Pirinéus. Enquanto isso, convida-o a viver a vertigem dum amor feito de avanços e recuos, com muito de desejo e muito pouco de racional.

Entre as várias leituras que “E a Noite Roda” permite, a mais fascinante será, porventura, aquela que se encontra implícita no próprio título do livro, indiciadora dum movimento de constante vai-e-vem, onde o gelo dá lugar ao fogo, a quase indiferença à tórrida paixão, a noite mais negra ao mais radioso dos dias. É assim com a noite que roda, como o é com a vida naquilo que ela tem de mais íntimo. A paz eterna é uma miragem. O apaziguamento não é mais que o ganhar fôlego para um novo embate. Alexandra Lucas Coelho prova-o de forma irrefutável. É todo um manancial de verdade aquele que emana das suas personagens. Com elas rimos e choramos, nos debatemos, nos envolvemos. Tão fortes, mas tão frágeis ao mesmo tempo. Como navios sem rumo, entregues aos caprichos dos elementos, certos que um tempo bonançoso surgirá de cada tempestade.




LIVRO: “O Muro”,
de Afonso Valente Batista
Ed. Glaciar, Outubro de 2013


Quando li “O Muro” pela primeira vez, prometi a mim mesmo que haveria de tornar a ele. Porquê? Porque me impressionou, desde logo, a verdade da escrita de Afonso Valente Batista, a vertigem dos momentos de vida e morte descritos no livro, a crueldade gratuita, os homens feitos às pressas. Agora que acabo de o reler com redobrada admiração e interesse, descubro ainda um motivo mais, que faz com que “O Muro” seja, na minha opinião, uma obra incontornável para quem queira compreender um pouco melhor esse terrível equívoco que foi a Guerra do Ultramar. Um motivo que podemos encontrar plasmado nas palavras do próprio autor: “Vai-se falar sempre pouco, muito pouco, do muito e medonho que por aqui se passa”.

Aqui”, no caso concreto, é o Norte de Angola, num tempo marcado pelos “adeus, até ao meu regresso” que, para cerca de 9.000 portugueses, foi “em caixa de pinho”, como canta Adriano. É, pois, da morte em vida para aqueles que por lá andaram, que nos fala “O Muro”, um livro-testemunho e, ao mesmo tempo, acutilante e revelador documento dum Portugal “parado, estático, temeroso, controlado, silencioso, miserável, ignorante, inculto”.

Afonso Valente Batista gere, de forma exemplar, o necessário distanciamento emocional face a uma realidade que viveu de perto e um inevitável apego aos factos, preservando-os da contaminação com discursos retóricos, conclusões fáceis, frases feitas. Recorre, para tal, às figuras “improváveis” do Mouraria, “de quem não se sabia nem o nome próprio nem o crisma, só a alcunha”; do Almeida, “a eliminar, pacientemente, dias no calendário da gaja das mamas grandes”; do Pimenta, “o Aires de apelido e olho mais ou menos parado”; do Lino, “o Dr. Lino, adornado em brandy com o fígado em decomposição”; do Bibi, do Resende ou do Pacação, “que alegravam o amanhecer com renhidos despiques de peidos”; do Pedro Paulo, “num caixão estranhamente leve, talvez por só levar o louro do cabelo e o verde dos olhos”; do Costa, “o cabo Costa, acompanhado por uma aranha disforme e peçonhenta, que se tinha inculcado no cérebro vinda daquele lugar”. Ainda do João, a única pessoa de eterna confiança que o Costa, o cabo Costa, conhecia, “porque o tinha convencido a ter orgulho em construir um muro sem saber para que servia mas que lhe aliviava as dores da alma.”

Uma última nota para dizer que este livro é marcante face à minha própria realidade. Não que tenha estado em África no delicado período da Guerra do Ultramar, mas pelos “estilhaços” que me atingiram nos tempos de Serviço Militar Obrigatório, em 1982, alguns dos quais conservo como “animais de pouca estimação”. Nesses tempos recalcados, vivi uma realidade “de parada e caserna” muito próxima da descrita no livro, igualmente com “brigadeirais discursos” para impressionar a “tropa pardaleja”, o convite à operacionalidade permanente em improváveis teatros de operações ao virar da esquina e muita gente frustrada, incompetente e mesquinha, a destilar estupidez e boçalidade sempre que a Guerra era para ali chamada. Deixo, assim, o meu reconhecido obrigado ao autor, com o renovado incentivo a que leiam “O Muro” e percebam “o tempo que o tempo teve até aqui chegar”.




LIVRO: “a máquina de fazer espanhóis”,
de valter hugo mãe
Publicado por: Porto Editora
1ª edição: Janeiro de 2010
19ª edição (1ª na Porto Editora): Agosto de 2016


Ao contrário de mim, o meu pai nunca foi homem dado a leituras. Os livros que povoam uma ou outra estante lá de casa não passam de ornamentos, pelo que seria de todo improvável que, dobrados já os 80, se atirasse agora ao livro que aqui me traz (a este ou a outro qualquer). Mas se porventura o fizesse, teria dito, a espaços e no final, com a habitual energia na voz e, quem sabe, uma gargalhada discreta: “Está bem caçado!” O mesmo teria dito o pai dele, até mesmo o avô, meu bisavô, portanto, de quem não conheço sequer o nome. O mesmo digo eu, que li “a máquina de fazer espanhóis”, o quarto romance de Valter Hugo Mãe, com uma avidez prazerosa e sempre, mas sempre, com um enorme sorriso.

Evoco o “está bem caçado” porque é daquelas expressões que se “institucionalizaram” na nossa família. Algo divertido e que faz sentido é isso mesmo para os outros; para nós “está bem caçado”. E como esta, muitas outras palavras ou expressões - “albirrar”, “recaxia”, “borzegui”, “até choras” -, caídas em desuso na linguagem corrente mas que sobrevivem num contexto mais íntimo. E o “está bem caçado” também porque, estou em crer, pertence à mesma família de um conjunto de expressões, a convocar outras tantas situações descritas neste livro, que não terão surgido de livre e espontânea vontade, antes farão parte duma certa herança “familiar”, coisas entendidas pelo autor aos seus ancestrais, num núcleo particularmente chegado.

Divertido e pleno de sentido é, pois, “a máquina de fazer espanhóis”, cuja acção decorre quase inteiramente no espaço dum lar da terceira idade e que junta uma catrefada de velhos na condição de protagonistas, confrontando-os com as suas tendências e manias, as suas birras e provocações, a sua casmurrice, os seus sofismas. Mas também com uma cumplicidade, uma ternura e uma forma única de ver o mundo que os torna realmente especiais, merecedores de toda a nossa atenção e do mais elevado respeito. A grande proeza de Valter Hugo Mãe neste livro é a de, com o devido pudor, revelar princípios e condições naquilo que podem ter de mais belo ou hostil, violento até. Fá-lo, convocando, em simultâneo, passado e futuro, ao encontro das marcas identitárias duma geração no fim da linha, afinal o produto acabado da nossa própria identidade enquanto indivíduos ou parte dum todo social. Em “a máquina de fazer espanhóis”, a nostalgia e a ternura passeiam de mãos dadas com a crueldade e a revolta, faces opostas de iguais moedas, reais, implacáveis, premonitórias. É um livro onde a ficção adquire um cunho de verdade incómoda, agigantando as pequenas coisas de outrora e relativizando um presente vergado ao peso da incapacidade crescente e da inevitável dependência, como se, confrontando a morte, só a memória pregressa valesse no somatório da vida.




LIVRO: “Que Importa a Fúria do Mar”,

de Ana Margarida de Carvalho

Ed. Maria do Rosário Pedreira

Teorema, Maio de 2013


Sejamos honestos: Ainda que sem comprometer o espetáculo, aquele início de jogo não era de modo a gerar entusiasmos de maior. Talvez porque as expectativas fossem poucas ou nenhumas. E depois, já na segunda parte, a jogada de génio, o golo de antologia * e, a partir daí, o prazer puro em cada passe, em cada drible, em cada assistência, em cada novo golo. Dava vontade ficar por ali, que o jogo se prolongasse até ao infinito...

Recorrer à gíria futebolística para ilustrar uma leitura pessoal de “Que Importa a Fúria do Mar”, a primeira incursão de Ana Margarida de Carvalho no romance, é descrever, de forma metafórica, o prazer que retirei deste livro. Aquele fio narrativo a diferentes velocidades, a caracterização metódica das personagens, a descrição dos acontecimentos com ponto de partida nos revoltosos do 18 de Janeiro de 1934 da Marinha Grande e a leitura improvável de que o Tarrafal foi uma história de amor são marcas do génio da autora às quais é impossível ficar indiferente. É que Ana Margarida de Carvalho não escreve bem; escreve muito bem. A tal ponto que damos por nós, a espaços, a repetir aquele parágrafo, a ler de novo aquela página, a voltar ao início no final daquele capítulo, num prolongar do prazer, como se quiséssemos gravar o texto, para sempre, na nossa memória.

Gostava ainda de salientar a fórmula encontrada pela autora para, subtilmente, introduzir poetas e canções nas páginas do livro. Uma “private joke” que proporciona imenso gozo à medida que se derramam palavras soltas de Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa, António Gedeão, Chico Buarque, Sérgio Godinho, Amélia Muge, Adriano Correia de Oliveira ou, logo no título, de Zeca Afonso.

* A “jogada de génio, o golo de antologia” refere-se ao Capítulo 14 - “De como nem todos os dias são dias passados”. A carta de Francisco a Maria Silvestre, com “prefácio” de Manuel António Pina, é das coisas mais bonitas que li em toda a minha vida. O meu reconhecido obrigado à autora.




LIVRO: “A casa-comboio”,

de Raquel Ochoa

Ed. Guilherme Valente

Gradiva Publicações, Março de 2010


Podemos dizer que “A casa-comboio” é a história do mundo, da Índia e de Portugal. Uma história que se inicia em 1885 e que, de forma plácida ou tumultuosamente, como um rio que flui, narra, geração após geração, o percurso da família Carcomo, no qual se misturam e confundem canções tradicionais e corações calorosos lavados pelo sol, a chuva, rios e mar, as torres dos templos e igrejas, as varandas dos lares de cada um e as brisas passando pelas ruas e palmeiras. Onde se fala de locais tão remotos como Damão Grande ou Dadrá, Silvassa ou Nagar-Aveli. Onde se acompanham “três mortes, dois casamentos, onze nascimentos, uma invasão”, no trajeto duma casa que mais parece um comboio.

Primeiro romance de Raquel Ochoa, “A casa-comboio” é um livro lindíssimo, daqueles que pegam no leitor pela mão e o levam numa viagem ao mais profundo do ser, a esse lugar desprovido de razão e onde moram as paixões, designado coração. Porque é com o coração que Raquel Ochoa escreve, apegando-se à alma daquela família, desvendando-a naquilo que tem de forças, mas também de fraquezas. Caminhando ao seu lado, construindo e refazendo, até restar não mais que a saudade.

Repórter de viagens, Raquel Ochoa tem na Índia um dos seus destinos repetidos. Esta sua “origem” nota-se a espaços no livro, mas os “apontamentos de viagem” que inscreve aqui e além, se na verdade dispensáveis, não representam um embaraço, não passam duma “contaminação” menor. É a força da sua escrita que prevalece e se dá a ver página após página – sublime a narrativa, em simultâneo, dos dois partos -, vibrante, hipnotizadora. Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2009, “A casa-comboio” é, pessoalmente, uma das grandes descobertas deste ano e cuja leitura recomendo vivamente.




LIVRO: “O Pianista de Hotel”,
de
 Rodrigo Guedes de Carvalho

Ed. Cecília Andrade

Publicações Dom Quixote, Maio de 2017


Em casa, no trabalho, na rua, na forma como articulamos com os outros, como regemos os nossos interesses e os nossos vícios, a vida encarrega-se de nos mostrar – quantas vezes da forma mais contundente - que o homem é a sua circunstância. Vem isto a propósito de “O Pianista de Hotel”, de Rodrigo Guedes de Carvalho, romance construído em torno de uma mão cheia de personagens, onde o postulado de Ortega y Gasset se assume ao virar de cada página.

Para Luís Gustavo, Maria Luísa, Saul Samuel, Pedro Gouveia ou Rui Begonha, o tempo passa, insidioso e voraz, deixando marcas indeléveis que se cristalizam e serão estigmas para a vida. No seu conjunto, elas definem cada uma das personagens, cada um de nós. Atitudes e reações adquirem um tom de previsibilidade difícil de contrariar. deixamos de ser donos absolutos da nossa própria vontade. Há vozes, quase sempre as mesmas, que remetem para o passado e nos lembram que os caminhos trilhados não são tanto uma opção pessoal. E voltamos novamente à circunstância!

Este é um romance absorvente, de cuja leitura se retira um enorme prazer. Construído de forma inteligente – aqui revelando o que seria de esconder, ali escondendo o que era esperado revelar-se - “O Pianista de Hotel” é uma obra na qual o leitor não pode deixar de se rever. Toca-nos a todos a forma direta como Rodrigo Guedes de Carvalho escancara as portas do coração das suas personagens e, ao mesmo tempo, põe o dedo nas feridas abertas da sociedade atual. São palpáveis as tensões que se vão acumulando e com as quais acabaremos, inevitavelmente, por conviver. Como as personagens deste livro, acabaremos por sentir a necessidade dum porto de abrigo – dum refúgio, se assim o quisermos. De um regresso à calma, se tal ainda for possível. Que tanto pode ser uma esplanada em frente à praia, sorvendo os últimos raios de um sol de Outono, como o cadeirão mais afastado da sala do velho hotel, sentindo o suave e terno dedilhar nas teclas dum piano.




LIVRO: “A Construção do Vazio”,

de Patricia Reis

Ed. Cecília Andrade

Publicações D. Quixote, Março de 2017


Narrado na primeira pessoa, “A Construção do Vazio” desvenda a história de Sofia, uma mulher marcada por um acontecimento traumático ainda na infância e cujo fio de vida acabará por se perder na ausência de sentido. Dela não saberemos muito, apenas o suficente para a compreendermos e, se possível, a aceitarmos. Nos seus amores e amizades, como nos seus silêncios e nos seus caprichos.

Os momentos iniciais do livro contêm uma carga emocional tremenda e são um desafio ao “estofo” do leitor. Recupera-se o folego quando a narrativa o permite, mas os momentos de acalmia não são mais do que uma mera ilusão, tão incómodo é o vazio que se vai instalando à medida que o livro avança. Desconhecemos ainda de que forma a história acaba, mas sabemos que só pode acabar mal. No final, a torrente de emoções resumir-se-á a um ténue fio de água, como um rio que corresse para a nascente.

Li Patrícia Reis pela primeira vez e fiquei com a certeza de estar perante uma enorme escritora. Ter devorado o livro em dois serões que se revelaram curtos é a prova provada do interesse que a leitura de “A Construção do Vazio” me despertou. É muito direta a forma como a autora vai esvaziando de emoção e de sentido a vida da personagem principal, desenhando-a assumidamente fútil ou caprichosamente manipuladora. Sobretudo, imensamente só. Não a defendendo por aquilo que sofreu, também não vira para ela o dedo acusador. Ao leitor a tarefa de julgar!




LIVRO: “Debaixo da Pele”,

de David Machado

Ed. Maria do Rosário Pedreira

Publicações D. Quixote, 2017


Duma tristeza imensa, que fere e dói; mas extraordinariamente belo. É este o sentir no momento em que termino de ler “Debaixo da Pele”, o mais recente romance de David Machado. Um romance que é sobretudo uma viagem ao interior das almas magoadas, incapazes de se superarem face aos traumas vividos, recusando a tentativa de buscar conforto nos outros e no mundo. Almas que se alimentam da desconfiança e do medo, em constante sobressalto no exercício quotidiano da sobrevivência. Almas que pairam na aridez duma paisagem destroçada, que escorregam para dentro de si mesmas e que arrastam na queda tudo à sua volta.

Fazendo discorrer a ação em três momentos precisos - cronologicamente afastados entre si e com vozes narrativas distintas, mas intrinsecamente ligados -, “Debaixo da Pele” convida o leitor a reconstruir histórias e percursos, envolvendo-o na própria narrativa. A escrita é subtil e juntar as pontas soltas resulta num exercício de persistência e fascínio. Particularmente interessante é a dualidade que a personagem do narrador/escritor assume numa das partes do romance, contraponto e moderador dessa verdadeira torrente dos sentidos que é o próprio exercício da escrita, demonstrando que um livro pode ser tudo aquilo que se quiser.

Debaixo da Pele” é a confirmação do talento de David Machado, justamente reconhecido pela sua obra anterior, “Índice Médio de Felicidade”, com o Prémio da União Europeia para a Literatura e com o Prémio Salerno Libro d'Europa. Um livro com almas dentro, onde avulta a qualidade da escrita e a suprema capacidade de contar uma história. Ainda que amarga e triste. Pessoalmente, um dos grandes lançamentos deste ano e obra de leitura obrigatória!




LIVRO: “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai”,

de Gonçalo M. Tavares

Ed. Porto Editora, 1ª edição Novembro de 2014


Há uma estranheza em “Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai” que começa no próprio título. Aquele “no seu século” soa deslocado, desde logo pela dimensão temporal desproporcionada. À medida que avançamos na leitura, porém, percebemos a importância do tempo na lógica narrativa do autor. Muito mais do que o espaço onde decorre a ação, redutor, concentracionário, esquematizado, conjunto de pontos ligados entre si, escalas precisas, dimensões exatas, é o tempo que se impõe, determinante, como uma urgência. Tempo e espaço, em qualquer caso, redutíveis a números elevados a expoentes de grandeza intangível.

Ler este livro é como ver um filme. Personagens deambulando numa deriva constante, flutuando, prosseguindo por impulsos vitais, obstinadamente assentes em propósitos aparentemente desprovidos de sentido. Cores glaucas, saturadas, um fundo de violinos raspados, câmara à mão, os grandes planos com décors indefinidos. A atenção ao pormenor – um olho enorme raiado de sangue, o mecanismo dum relógio sem o ponteiro das horas, uma corrida de 100 metros decidida numa fração de segundo -, o tempo como uma ameaça, audível no seu tic-tac constante.

Gonçalo M. Tavares é um mestre do detalhe. A sua escrita enlaça de forma subtil o leitor, ao encontro de paisagens insólitas, paradoxalmente reais. Espaços e tempos inóspitos, desconfortáveis, a cuja força interior (efeito de massa?) se acaba por sucumbir, na voragem do medo, no torpor da vertigem. A isto junta o autor uma economia narrativa ímpar, poupando o leitor a descrições inúteis, dando-lhe espaço à imaginação e margem ao tempo. O seu tempo. Que tanto pode implicar uma leitura de um fôlego, como parcelar, página a página, linha a linha. O futuro é um lugar incerto. No limite, “aceitar o que vai acontecendo, e avançar”.




LIVRO: “Seja feita a tua vontade”,

de Paulo M. Morais 

Ed. Maria do Rosário Pedreira

Casa das Letras, Junho de 2017


Para o ser humano, de uma forma geral, a morte é dos momentos mais complexos e difíceis de aceitar e superar. É todo um luto feito de pequenos lutos, é algo que exige adaptação, que implica disponibilidade e tempo. É ainda um passar a pente fino aquilo que fomos e somos, numa espécie de redescoberta pessoal que obriga, as mais das vezes, a uma redefinação de critérios e valores. É disto que fala “Seja feita a tua vontade”, romance de Paulo M. Morais publicado em Junho deste ano e que evoca a relação cúmplice entre um avô octogenário que decide colocar um ponto final na sua existência, e um neto, disposto a ajudá-lo naquela que será, porventura, a sua última vontade.

É deveras curiosa a forma como Paulo M. Morais desenvolve a narrativa e coloca o leitor perante a suprema questão do quem decide o quê, sendo o quê, neste caso, o ato derradeiro e irreversível, a morte. Há uma primeira parte do livro que parece apontar para a pessoa como a grande decisora. O processo, lento e moroso, contempla um reavivar de histórias e memórias, convocando tempos e lugares, numa viagem pacificada às origens do próprio eu. Porém, quando nada o faria prever, a difícil caminhada rumo a um fim cada vez mais próximo sofre um volte-face. Abandona-se o sentido da ideia inicial e decide-se permanecer ligado à vida, o que irá gerar um conjunto de reações paradoxais. Entre avanços e recuos, a condição biológica acabará por ditar a sua lei, convocando um outro luto, novas reflexões.

É certo que “Seja feita a tua vontade” pode ser visto como mais uma voz a juntar-se à grande discussão em torno da eutanásia. Mas resumir o romance a esta dimensão socio-legal e filosófica e às suas implicações, mais do que redutor, seria injusto para com Paulo M. Morais. É, sobretudo, nas emoções que se desprendem deste romance que reside a sua grande força. Com ele acabaremos por ir ao encontro de nós próprios, netos que somos, avós que seremos. Com ele somos convidados a um exercício de sublimação da dor da perda, recuperando momentos de proximidade bem vivos na memória. No limite, a que nos preparemos para algo tão natural como a morte. Finalmente, acabaremos por voltar ao início de tudo com a maior de todas as interrogações: “Seja feita a tua vontade” ou “Seja feita a Tua vontade”?




LIVRO: "Rebeldia",

de Cristina Carvalho

Ed. Editorial Planeta, Junho de 2017


Tropecei nele por acaso e acho que simpatizámos logo à primeira. Não sei se pela capa, vermelho-cor-de-sangue, se pelo título, “Rebeldia”, que não pela autora, de quem nada sabia. Houve algo que me atraiu desde o princípio, algo inexplicável e ao qual não soube resistir. Agora que fecho o livro sobre a sua última página, fecho também os olhos e vejo o quão certo estava na minha intuição e o bom que foi conhecer Cristina Carvalho. Ler “Rebeldia” foi o tempo breve de uma tarde em sobressalto, tamanha a sua força, tão intensos os pedaços soltos de vida partilhados na primeira pessoa.

Li-o, como disse, ao longo duma tarde. Li-o com a avidez própria de quem se confronta com um grande romance, nos passos duma mulher que recusa ser aquilo a que parece condenada pelas convenções da época. A época é a da longa noite da ditadura salazarista e a mulher, Leninha, está firmemente decidida a recusar um futuro que adivinha pequenino. Na grande cidade acabará por descobrir, de forma amarga, que nela as paredes podem ser tão ou mais pequenas que o espaço da pensão onde sempre vivera com os pais, numa pequena vila de província.

Da autoria de Cristina Carvalho, “Rebeldia” é um “fresco” intemporal duma sociedade que teima em fazer tábua rasa do conceito de igualdade de género como um direito que à mulher assiste. É um grito de revolta contra o “status”, contra um “é permitido proibir” que parece perpetuar-se no tempo. É um retrato de coragem nessa veloz fuga para a frente por caminhos feitos de muros cada vez mais altos, ao longo de margens cada vez mais estreitas. No final, restará o exemplo de todas as Leninhas deste mundo, ancoradas na força de serem mulheres, dispostas a tudo sofrer pela preservação da sua dignidade.




LIVRO: “Montedor”, 

de José Rentes de Carvalho

Ed. Quetzal Editores, Setembro de 2014


Ao longo das gerações, são sem conta as famílias portuguesas em que há alguém como o triste protagonista de Montedor: rapaz sem futuro, com um passado apenas de sonhos, arrastando-se num presente que é uma verdadeira morte lenta.

Mau grado a simplicidade das personagens e das cenas, há no romance uma tensão permanente, e pode-se com verdade dizer que quase cada página encerra um momento dramático ou antecipa uma tragédia, a qual, talvez porque raro chega a acontecer, cria um desespero cinzento, retratando bem, e cruamente, os medos e o sofrimento da sociedade portuguesa, passada e presente.

Publicado pela primeira vez em 1968, Montedor é o romance de estreia de J. Rentes de Carvalho, sobre o qual escreveu José Saramago: “O autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza (...), uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor.” Obrigatório ler!




LIVRO: “As Viúvas de Dom Rufia”, 

de Carlos Campaniço

Ed. Casa das Letras, Maio de 2016


Uma boa história, saber contá-la e ter uma linguagem apelativa”, são os ingredientes perfeitos para que um livro tenha sucesso, segundo Carlos Campaniço [entrevista de 20 de Setembro de 2015 ao Barlavento, Semanário regional do Algarve]. Quem lê o seu último romance, “As Viúvas de Dom Rufia”, vai certamente encontrá-los em doses generosas, nesta viagem recheada de peripécias ao fundo dum certo Alentejo de princípios do século passado, com os seus jeitos e gentes, os seus segredos, as suas idiossincrasias.

Conhecido por Dom Rufia desde moço, Firmino António Pote, criado sem recursos numa vila alentejana, promete a si mesmo tornar-se rico. Negando-se à dureza do trabalho do campo, divide durante anos a sua sobrevivência entre o ócio e alguns negócios frugais. Mas, já nos trinta, munido de assombrosa imaginação, bonito como poucos e gozando de uma enorme capacidade de persuasão, sobretudo entre as mulheres, lobriga várias maneiras de alcançar o seu objectivo, fingindo continuamente ser quem não é. Para isso, porém, é obrigado a viver em vários lugares ao mesmo tempo, dando a Juan de los Fenómenos, um velho chileno em busca de proezas sobre-humanas, a ilusão da ubiquidade.”

Com uma escrita fluida e bem-humorada, “As Viúvas de Dom Rufia” lê-se de um fôlego e com um sorriso ao canto da boca. Para tal muito concorre a trama bem urdida por Carlos Campaniço, fortemente ancorada numa escrita onde se destaca uma certa forma de dizer, própria do Alentejo. À imaginativa tipificação das personagens e à cuidadosa descrição dos usos e costumes da época, juntam-se expressões e provérbios que descrevem paisagens interiores e estados de alma. Contas feitas à vida daqueles que gravitaram em torno de Dom Rufia, percebe-se que, malgrado o logro, o balanço é positivo – só mesmo Dom Rufia sai a perder no meio desta tão longa quanto insólita aventura, ele que jaz morto e arrefece. A ganhar saímos também nós, os leitores, com esta boa história, bem contada e com uma linguagem criativa. O que não acontece todos os dias!




LIVRO: “A Rainha Ginga”,
de José Eduardo Agualusa
Quetzal Editores | Junho de 2014


A Rainha Ginga”, de José Eduardo Agualusa, é um daqueles livros que tem o condão de nos transportar muito além da própria história. É como o breve instante de um sonho, livre e descomprometido, com imagens que se sucedem, nítidas, quase palpáveis, desafiando a ténue barreira entre o real e o etéreo. É também um livro que põe a nú a natureza humana naquilo que ela tem de mais instintivo, na pureza do amor quanto na mais vil barbárie.

O livro narra, na primeira pessoa, a história de Francisco José da Santa Cruz, um padre pernambucano, “filho de mãe índia e de pai mulato”, que se tornou secretário da Ginga – depois D. Ana de Sousa, Rainha do Dongo e da Matamba. Da rainha Ginga, o livro não aporta mais que vislumbres. Da sua presença fortíssima e da sua inteligência, da sua capacidade negocial e do seu carisma, mas também do se lado mais sombrio e das suas excentricidades. É, pois, sobre Francisco José da Santa Cruz que assenta toda a ação, por ele (e através dele) se desfiando a história, feita de avanços e recuos, conquista e perda, dor e morte. Sobrevivendo aos acontecimentos mais improváveis, onde impera a maldade do homem, o padre pernambucano acaba por sucumbir à própria fé, que renega, em nome do bem e da verdade.

Admito que o livro até possa defraudar aqueles que, legitimamente, pensariam encontrar aqui, passo a passo, a história dessa figura lendária que foi a rainha Ginga. Mas isso não belisca o mérito de ser um livro belíssimo, ancorado numa prosa literária próxima daquela que notabilizou tantos relatos de viagem, com destaque para a incontornável “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto. É entre Angola e o Brasil, o ceticismo e a fé, escravos e homens livres, a realidade e o sonho, que “A Rainha Ginga” se desdobra, abrindo-nos a cada capítulo, a cada página, um mundo de cor e de magia inigualável.




TERTÚLIA: "Porto de Encontro",
com José Eduardo Agualusa
Auditório da Biblioteca Almeida Garret – Porto
10 jun | sab | 17:00


A encerrar a sexta temporada do “Porto de Encontro”, José Eduardo Agualusa foi o convidado de honra para uma conversa de duas horas à volta dos livros e não só. “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, o seu último livro, foi o pretexto para mais um encontro conduzido por Sérgio Almeida e com leitura de excertos do livro por José Carlos Tinoco. O auditório da Biblioteca Municipal do Porto mostrou-se exíguo face a um público ávido de ouvir o jornalista e escritor angolano, não saindo defraudado deste momento de partilha e reflexão.

José Eduardo Agualusa começou por evocar a sua ligação ao Porto, recordando que foi aqui que nasceu o seu primeiro projeto editorial, a revista “Caminho. Longe”. A conversa derivou então para Angola, terra natal do escritor, que citou Christine Messiant para referir que “em Angola até o passado é imprevisivel”. Agualusa coloca os pontos nos ii quando afirma que “Angola não é uma democracia” e que “as ditaduras potenciam o pior que há em nós”. Dominada pelo medo - “o medo corrompe as pessoas”, diz –, Angola está à beira de eleições "que não irão mudar nada". “Os partidos estão reféns do sistema porque dependem dele”, acrescenta Agualusa, concluindo com uma pergunta: “Porquê, então, votar?”

Entre as muitas ideias deixadas por José Eduardo Agualusa nesta edição do “Porto de Encontro”, importa registar a seguinte: “Ler é um exercício de alteridade, um exercício de ver o outro. Só a literatura tem esse poder de humanizar”, diz o escritor, para logo partilhar com os espectadores uma dúvida: “Sempre me perguntei o que lêem os ditadores”. E há uma resposta simples, pelo menos no caso do ditador angolano: “José Eduardo dos Santos não lê. Vê televisão.” Outra ideia que fica é a de que “os angolanos são grandes contadores de histórias” e ainda que “é quando o medo muda de lado que as revoluções acontecem”, remetendo para os recentes episódios no cenário político angolano.

Um dos seis finalistas do Man Booker International Prize 2016, com o livro “Teoria Geral do Esquecimento”, Agualusa confessa que aquilo que mais gosta nos livros é a sua imprevisibilidade: “Escrever é uma aventura permanente”, diz, o que nos leva diretamente ao encontro de “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, o seu último livro. Um livro que foi iniciado “há seis ou sete anos” e que tem como ponto de partida a historia real do cantor e ativista luso-angolano Luaty Beirão para desenvolver uma ficção assente na “reabilitação do sonho enquanto instrumento da consciência e da transformação”. Mia Couto define Agualusa como “um tradutor de sonhos” e são os sonhos o assunto fulcral da parte final desta fascinante conversa. Lembrando que “sonhar é ensaiar a realidade no conforto da nossa cama”, de novo Agualusa: “Eu tenho uma relação muito forte com os sonhos. Sonho muito. Sonho com os títulos dos livros, com contos completos, com personagens inteiras. (…) Ainda hoje sonhei com a situação no Brasil. Chamava-se [o sonho] 'A Noite dos Palhaços'. As pessoas, com máscaras do Temer, caiam do cimo das casas, dos telhados. Hoje li os jornais mas o Temer não tinha caído.”




TERTÚLIA: À Palavra no Museu de Ovar"
com Raquel Ochoa
Museu de Ovar
06 Mai 2017 | sab | 22:00


À Palavra no Museu de Ovar” poderá não ter gerado mais leitores, mas gerou certamente melhores pessoas. A afirmação é de Carlos Nuno Oliveira, o grande responsável pelas 59 edições ao longo de quatro anos, a qual subscrevo inteiramente. Se dúvidas ainda restassem, a noite de ontem, passada na companhia de Raquel Ochoa, encarregar-se-ia de as dissipar.


Foram duas horas de conversas à volta dos livros desta jovem escritora, baseados num percurso de vida verdadeiramente singular. Da viagem iniciática de seis meses, com ponto de partida na Costa Rica e final feliz no Brasil, nasceu “O Vento dos Outros”, do qual se levantou a “pontinha do véu”, à mesa com porteños ou nas asas dum condor.

Livro após livro, revisitaram-se histórias e momentos significativos da vida da autora e da sua identidade enquanto portuguesa. Falou-se muito de Portugal e do “ser português”, da emoção que nos é intrínseca e do sangue que nos corre nas veias e que nos torna cúmplices uns dos outros, em qualquer parte do mundo e nas mais variadas circunstâncias. E percebeu-se, de maneira intensa, o quanto esta mulher ama Portugal e a sua História.

Ficou o convite à descoberta, numa “casa-comboio”, dos territórios portugueses de Damão, Diu e Goa em 1885, ou da incrível história de resistência de Dona Maria Adelaide de Bragança, “A Infanta rebelde”, ou ainda do desfecho mais que improvável d' “As Noivas do Sultão”. Ficou o convite à descoberta de Raquel Ochoa. Pura vida!




TERTÚLIA: "À Palavra no Museu de Ovar",
com Armando Carvalho Ferreira
Museu de Ovar
20 abr | sáb | 16:00


Integrando um intenso e valioso programa promovido pelo Museu de Ovar para assinalar o Dia Nacional dos Museus 2017, teve lugar na tarde do passado sábado mais um “À Palavra...”, desta vez com Armando Carvalho Ferreira, autor de "O Último Moleiro do Rio". Foi uma hora e meia de interessante conversa “de roda dos moinhos”, infelizmente interrompida de forma algo abrupta, porque o “programa das festas” assim o exigia. Ficaram por dar os parabéns ao Carlos Nuno Granja e à sua “Doninha Ternurenta” pelo primeiro aniversário de vida da Livraria, ficaram por fazer perguntas a merecer respostas, ficaram por partilhar memórias a convocar saberes e sabores, tão presentes na vida de tantos.

O Último Moleiro do Rio” fala-nos duma realidade que, ao longo de décadas, constituiu uma atividade económica de enorme importância no nosso território, entrando em franco declínio nos anos 60 e 70 do século passado, até acabar praticamente por desaparecer. No livro, Armando Carvalho Ferreira olha "com o coração" para este outrora vasto património, remetendo para segundo plano a vertente técnica, na qual é uma das maiores autoridades a nível mundial, antes fazendo incidir a sua escrita no lado humano, nas histórias de vida ligadas à arte e ao rio.

No embalo duma escrita límpida, simples - como é simples o povo (!) -, o livro lê-se de um fôlego. Lembrando o guião dum filme neo-realista (“Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, assaltou-me à memória vezes sem conta), o livro faz da história de José, precisamente “o último moleiro do rio”, uma história de vida, no confronto interior entre o manter vivo o legado da família ou baixar os braços, rendido ao peso do progresso e das novas tendências. Rafael, o filho, serve de contraponto neste pungente conflito de gerações. “O mundo mudou muito nos últimos tempos e eu quero fazer parte dessa mudança. Eu adoro os nossos moinhos, pois cresci com eles e foram a minha casa desde que me conheço. Mas não me consigo ver preso a esta vida de moleiro, nem acredito que essa vida tenha futuro daqui a uns anos”, diz Rafael, num dos diálogos mais duros que tem com o pai e que pontua, em definitivo, a rutura com o passado.

Importa reforçar a ideia de que este é um belo livro e que Armando Carvalho Ferreira, apesar de recusar a chancela, é um excelente escritor. Embora de forma irregular, investiu três anos da sua vida nesta obra e acaba por nos oferecer um pedaço enorme de si, singular, humano e belo. Como um poema!

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