TEATRO: “Hoje Jogamos em
Casa”,
de Tanya Ruivo e Rafael
Polónia
Encenação e cenografia |
Tanya Ruivo
Interpretação | Carolina
Gonçalves, Fausto Dias, Gonçalo Barros, Inês Afonso, João
Lopes, João Macedo, Júlia Pinto, Marta Magalhães, Santiago
Valente
Produção | Conversa Própria
Salão irmãos Unidos
06 e 07 Jul 2018 | sex e sab |
21:30
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“(...) E depois olho para mim a
sair do supermercado, ao fim do dia, de saco vazio e a chegar a
casa e lá está ele, o mânfio que vi crescer, ali, e tenho de
lhe falar para ele me responder, ou não o ouço até ao momento
em que me diz que já vem (…) Pá, e vocês não eram iguais?
Não éramos iguais? Quantas vezes não nos pusemos na alheta e
desaparecemos, sem que ninguém nos pusesse a vista em cima o dia
inteiro?”. Foi neste tom crispado, de fúria contida e nervos à
flor da pele, que o colectivo Conversa Própria surgiu em palco na
apresentação da sua mais recente produção, “Hoje Jogamos em
Casa”, um trabalho que aborda os dilemas da adolescência na
transição para a idade adulta e os reflexos desta fase
problemática na ordem familiar.
Transformado em quadra de jogo, o
palco é o local onde se descarregam todas as emoções, de
euforia, indecisão, dúvida e frustração feitas. Os actores ora
são apenas filhos, ora são apenas pais, ora se repartem, em
simultâneo, entre pais e filhos, para abordar temas tão
prementes como os laços familiares, a escola e o emprego, os
desafios da identidade ou a consolidação da autonomia, mas
também a infedelidade, a sexualidade, a eterna insatisfação, a
forma como mentimos a nós próprios ou como muda o eu à
medida que tudo muda à nossa volta. Não exactamente uma guerra
mas, decisivamente, um confronto com uma dimensão interior do
tamanho do mundo, este embate evidencia um turbilhão de mudanças
nas quais o risco faz parte do processo e onde os amigos
constituem um verdadeiro porto de abrigo.
Na linha dos trabalhos anteriores
– sobretudo do iniciático “FALSOS dEUSES”, do qual surge
quase como um prolongamento -, “Hoje Jogamos em Casa” é um
exercício de teatro com enorme solidez, ancorado num texto
realista e muito bem interpretado por este naipe de jovens
actores, muitos deles com provas dadas (quem não se lembra de
“Atalhos”, de Joana Craveiro, que este colectivo levou à
Culturgest, na fase final do PANOS 2017). Mérito ainda para a
encenação de Tanya Ruivo, encontrando soluções de grande
dinamismo e fluidez nos momentos mais marcantes, nomeadamente na
hilariante cena da piscina, os baldes de água fria a sucederem-se
a cada nova revelação. Teatro do real, teatro que mexe e obriga
a reflectir, “Hoje Jogamos em Casa” é mais um grande momento
na história do colectivo e a afirmação dum projecto que tem de
continuar em frente. Com muita força e ambição!
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TEATRO: “Mendoza”
Ideia original e direcção |
Juan Carrillo
Adaptação | Antonio Zúñiga
e Juan Carrillo, a partir de Macbeth de William
Shakespeare
Interpretação | Marco Vidal,
Mónica del Carmen, Erandeni Durán, Leonardo Zamudio, Martín
Becerra, Germán Villarreal, Ulises Martínez, Alfredo
Monsivais, Roam León y Yadira Pérez
Máscaras | Martín Becerra
Produção | Los Colochos Teatro
Teatro Nacional de S. João
20 jun 2018 | qua | 21:00
FITEI – Festival Internacional
de Teatro de Expressão Ibérica
Por um lado há “Macbeth”, a
mais enigmática tragédia shakespeareana, tendo como ponto de
partida o encontro de um obscuro chefe de clã com três bruxas
que lhe comunicam três profecias, uma das quais – a de que será
coroado Rei da Escócia – despertará nele uma terrível ambição
e dará início a uma espiral de violência, loucura e morte. Por
outro lado temos a Revolução Mexicana, com início em 20 de
Novembro de 1910, que acabou com a longa ditadura de 34 anos do
general Porfírio Diáz e gerou o levantamento de líderes
revolucionários icónicos como Francisco Madero, Emiliano Zapata
ou Pancho Villa. Conjugando a intemporalidade da obra de
Shakespeare com o mais marcante acontecimento do México no século
XX, Juan Carrillo constrói “Mendoza”, perturbadora metáfora
do mundo depravado em que vivemos, onde o bom é mau, o feio é
belo e o justo, injusto.
A acção decorre no interior dum
quadrado, os adereços reduzidos a algumas mesas e cadeiras, o
público sentado em redor, misturando-se com os nove actores em
palco. Bebe-se cerveja mexicana (o público também bebe). Tudo o
mais é violência, assassinatos, remorsos, bruxarías e mortos
que sussurram vinganças. E sangue, muito sangue, neste que é um
Macbeth à mexicana, ou seja, uma peça que respeita a estrutura
original da obra de Shakespeare e preserva os seus episódios
principais, mas com outras palavras e outros referentes, dando a
ver a realidade do México de ontem e de hoje (a contagem dos 43
estudantes mortos no massacre de Iguala, em 26 de Setembro de
2014, é um verdadeiro murro no estômago do espectador). Também
a poética do texto original é alvo da necessária
adequação, cedendo uma boa parte do seu lugar à oralidade
do quotidiano - uma linguagem dura e agressiva onde cabe o
palavrão, a par de rezas e ladaínhas reveladoras duma crendice
que combina, em partes iguais, o sagrado e o profano.
Da sábia forma como funde o
clássico com o moderno, retira “Mendoza” a sua grande força
e fascínio. É que não se trata apenas de reinterpretar um texto
maior da literatura, algo feito pela enésima vez em teatro. É
sobretudo na encenação, na forma como Juan Carrillo se apega ao
detalhe, coreografa os movimentos e tira o maior partido da
intensidade do brilhante texto - uma adaptação sua e de Antonio
Zúñiga -, que reside a marca distintiva desta peça. E há,
claro, os actores, rigorosos na forma como encarnam as
personagens, convincentes na sua enorme expressividade, comoventes
na musicalidade das suas palavras, emocionantes na
naturalidade com que interagem com o público. William Shakespeare
ter-se-ía sentido arrebatado e orgulhoso vendo como Los Colochos
Teatro souberam tratar tão bem o texto original, firmando a ouro
uma das mais belas páginas da história do FITEI!
[Foto:
diariodominho.pt]
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TEATRO: “Lulu”
A partir de | “Espírito da Terra” (1903) e “A Caixa de Pandora” (1904), de Frank Wedekind
Encenação | Nuno M. Cardoso
Dramaturgia | Nuno M. Cardoso e João Luis Pereira
Cenografia | Nuno Carinhas
Interpretação | Afonso Santos, António Afonso Parra, Catarina Gomes, Daniela Cruz, João Cardoso, João Melo, Mafalda Lencastre, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Sara Garcia e Vera Kolodzig
Produção | Teatro Nacional de S. João
Teatro Carlos Alberto
17 Jun 2018 | dom | 16:00
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
Há peças das quais gostamos muito, outras assim-assim e outras que, definitivamente, não nos caem no goto, comportam pouco valor acrescido, tornam-se fastidiosas, representam uma enorme perda de tempo. Ora, “Lulu” encaixa-se nesta última categoria. Não porque o texto não seja bom – esta é a história duma mulher que vive na opulência mas que repudia a dependência dos vários maridos que vão surgindo na sua vida e acaba a prostituir-se nas ruas de Londres –, mas porque assenta numa encenação medíocre, sem chama nem brilho, confrangedoramente à margem de qualquer lampejo de imaginação.
Dando vida à mesma personagem em diferentes momentos da acção, Vera Kolodzig, Catarina Gomes e Sara Garcia jamais conseguem fazer passar a ideia de “mulher fatal” inerente à condição da protagonista, antes pactuam com o tom baço e cinzentão da peça, afundando-se no estereótipo. Particularmente penoso é o último acto, os “clientes” a sucederem-se, o tom monocórdico dos diálogos a eternizar-se, a paciência do espectador já completamente esgotada de tanto vai e vem estéril de ideais, opaco de sentido. Com “Lulu”, o FITEI 2018 dá um verdadeiro “tiro no pé”. Ou talvez não. Afinal, sempre é necessária uma excepção para que qualquer regra se confirme. E a regra dita que o nível deste FITEI seja enorme.
[Foto: facebook.com/FestivalFITEI]
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TEATRO: “Margem”
Texto | Joana Craveiro
Direcção | Victor Hugo Pontes Cenografia | F. Ribeiro Música | Marco Castro e Igor Domingues Interpretação | Alexandre Tavares, André Cabral, David S. Costa, Hugo Fidalgo, João Nunes Monteiro, José Santos, Magnum Soares, Marco Olival, Marco Tavares, Nara Gonçalves, Rui Pedro Silva e Vicente Campos Produção | Nome Próprio Teatro do Campo Alegre 16 Jun 2018 | sab | 17:00 FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
— Esta não é uma história de 1937.
— Ou só de 1937.
— E todos os exemplares queimados do livro numa praça pública da Bahia não conseguiram que a história ficasse só em 1937 e aí morresse.
— Junto com o Sem-Pernas que se lançou no morro, com ódio dos que o perseguiam.
— Junto com a Dora que morreu de amor.
— De febre.
— De amor.
— Junto com todos os outros que nestes 80 anos ficaram pelo caminho.
— Às vezes pensamos que caminho é este que engole tantos.
— Sem que eles tenham tempo de dizer «estamos aqui».
80 anos volvidos sobre a publicação de “Capitães da Areia” - retrato amargo dos meninos de rua no trapiche baiano, da autoria de Jorge Amado -, Victor Hugo Pontes recuperou o tema e foi à procura dos novos “capitães da areia”, aqueles meninos e meninas que, nos dias de hoje, não tendo cometido crime algum, tiveram apenas a má sorte de nascer no lugar errado, algures na margem (ou à margem) da Sociedade. Com assinatura de Joana Craveiro, o texto da peça tem por base os relatos de jovens de duas instituições parceiras neste trabalho – a Casa Pia, de Lisboa e o Instituto Profissional do Terço, no Porto – e dele resulta um espectáculo de dança e teatro em partes iguais, muito rico visualmente e com uma mensagem social assertiva e plena de actualidade.
A música de Marco Castro e Igor Domingues (Throes + The Shine) espalha-se já pela sala quando as portas do Auditório se abrem para que o público possa entrar. Também já lá estão os doze jovens actores, acompanhados por duas mãos cheias de figurantes muito mais novos, uma imensa energia naqueles corpos franzinos, muita briga e jogo de bola, uma palmeira a assistir discretamente às brincadeiras das crianças e a fazer a ponte entre o Brasil tropical, palco da acção do livro, e este lado de cá do Atlântico, esta outra margem de tanto mar. Não temos aqui Pedro Bala, João Grande, o Professor, o Sem-Pernas, o Pirulito, a Dora ou o Volta-Seca, mas temos o Alexandre, o Rui Pedro, o Hugo, o David, a Nara – maravilhosa Nara, bravo! -, o Magnum ou o Marco, o que vai dar no mesmo, que o mesmo é dizer, na mesma polícia que reprime, no mesmo medo e dor, na mesma casa onde a felicidade fica à porta.
“Pobres como podres”, os novos capitães da areia partilham com os meninos de Jorge Amado uma casa que não é sua, a ausência de um pai ou de uma mãe, o estarem em défice logo à partida ou terem-se visto em défice por razões às quais são alheios. Aqui, ser criança não é achar que tudo é fantasia ou acreditar num mundo cor de rosa cheio de pipocas. Bem pelo contrário, é não pedir com os olhos, é não acreditar no poder dum sorriso, é desconhecer o carinho e o afecto. Com “Margem”, Victor Hugo Pontes abre as portas a uma realidade que afecta actualmente mais de 8.000 crianças e jovens em Portugal e deixa-nos um recado que se nos cola à pele. É o teatro, uma vez mais, a cumprir a sua missão de revelar tudo aquilo que não é imediato, a ir ao fundo do Homem.
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TEATRO: “Provisional Figures”
Texto | Isabela Figueiredo e Gonçalo M. Tavares
Encenação e Dramaturgia | Marco Martins
Cenografia | Fernando Ribeiro
Interpretação | Ana Moreira, Ivan Ammon, Maria do Carmo Ferreira, Pedro Cassimo, Pete Dewar, Richard Raymond, Robert Elliot, Sérgio Cardoso de Pinho, Victoria River
Produção | CCTAR – Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua
Teatro Rivoli – Palco do Grande Auditório
16 Jun 2018 | sab | 19:00
FITEI - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
“Um pela agonia,
Dois pela alegria,
Três pela menina,
Quatro pelo menino,
Cinco pela prata,
Seis pelo ouro,
Sete pelo segredo
Seguro num tesouro.
Oito pelo desejo,
Nove pelo beijo,
Dez pela ave
Mais bela que vejo.
Pega.”
O espectáculo está prestes a começar. O público vai tomando o seu lugar e de imediato se dá conta que irá partilhar os assentos na plateia com os actores, cujas cadeiras, dispersas pela sala, estão reservadas. Enquanto se espera pelo início do espectáculo, o som de fundo é o de entrevistas gravadas que remetem para experiências de vida particularmente duras em contexto laboral, a integridade e a própria dignidade da pessoa feridas em nome desse “bem maior” que é o ter trabalho, seja a que preço for. Na verdade a peça já começou e é Marco Martins a colocar-nos um nó na garganta ao dizer-nos que a Ana ou o Robert, o Sérgio, a Victoria, a Carmo ou qualquer um dos outros, somos nós. Um nó que se aperta à medida que os (não) actores vão surgindo em palco e expondo o provisório das suas vidas, a precariedade e a humilhação, o dinheiro escasso e a família longe, a felicidade e o amor eternamente adiados.
Culminando um processo de dois anos de investigação junto da comunidade portuguesa de Great Yarmouth e baseando-se nos testemunhos individuais de quem viveu de perto este período de incerteza, “Provisional Figures” propõe-nos uma reflexão sobre os problemas da identidade e da emigração num contexto urbano fortemente abalado pela crise económica e consequentes convulsões sociais. É um trabalho que mergulha numa realidade relativamente desconhecida em Portugal e que nos fala da emigração no auge da crise económica (2009-2014), em particular para a região de Norfolk, outrora destino balnear de eleição para os britânicos, agora reconvertido em centro da indústria de transformação alimentar.
Com “Provisional Figures”, Marco Martins volta a privilegiar o teatro do real, oferecendo-nos uma peça de enorme significado e alcance, em nome da crise, uma verdade que não pode ser esquecida. Uma crise que se revelou tremenda para milhões de pessoas sobretudo nos países do Sul da Europa, desestruturou famílias, comunidades inteiras, levou ao desemprego em massa, encerrou milhares de micro, pequenas e médias empresas... mas que deu muito jeito a alguns. E que pode estar aí ao virar da esquina, doa a quem doer, porque pode vir a dar jeito a alguns outros, afinal os mesmo de sempre. A presença dos não actores em palco reforça a mensagem, espicaçando recorrentemente o público com essa ideia tão querida ao encenador de que “todo o mundo é um palco”. E é, finalmente, o homem que está em causa, enquanto indivíduo dito superior, a revelar-se pior do que qualquer outro animal, o mais cruel para os outros e para si próprio.
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TEATRO: “Caranguejo Overdrive”
Encenação | Marco André Nunes
Dramaturgia |Pedro Kosovski
Interpretação | Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Matheus Macena, Fellipe Marques
Músicos em cena | Maurício Chiari, Pedro Leal, Pedro Nego
Produção | Aquela Cia. de Teatro
FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
A sinopse da peça diz-nos que esta é a história de Cosme, apanhador de caranguejos no mangue carioca, e da sua loucura decorrente da participação na Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX. Uma história que o trará de volta ao Rio de Janeiro onde encontrará uma cidade em grande transformação, uma cidade que já não reconhece e que o fará sentir-se como que exilado na sua própria terra. Mas “Caranguejo Overdrive” é muito mais do que isso. É a lama e a imundície, a sobrevivência no fio da navalha, a sanha do opressor e a miséria dos que trabalham por um prato de arroz. É a corrupção e os compadrios, os casos mal parados e a criminalidade, a ganância dos poderosos e a impunidade. É Tancredo Neves e Sarney e Collor e Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e Lula e Dilma e Temer, muito escândalo e muito samba, muito impeachment e muito recurso eternamente à espera de decisões que decidem para que tudo fique na mesma. É o obscurantismo, a macumba, as favelas e o desastre ambiental de Mariana. E é Marielle Franco, socióloga, feminista e defensora dos direitos humanos, executada com três tiros na cabeça e um no pescoço há escassos meses atrás.
Servindo-se de um acontecimento marcante da história do Brasil – travada entre o Paraguai e a Tripla Aliança, composta pelo Brasil, Argentina e Uruguai, a Guerra do Paraguai foi o maior conflito internacional ocorrido na América do Sul até aos dias de hoje -, a peça faz uma atualização do momento actual da cidade maravilhosa (e, por extensão, do próprio Brasil), assumindo um cunho vincadamente político. Com o dedo acusador apontado ao poder e aos seus sequazes, “Caranguejo Overdrive” é um grito desesperado que rompe amarras e clama por justiça e paz, por pão e trabalho. É um manifesto que reivindica um Brasil justo e livre, onde todos tenham as mesmas oportunidades e direitos, onde a tão propalada justiça social não seja um insulto aos mais pobres. Mas também um Brasil onde os criadores, os artistas, não sejam ostracizados, onde possa haver dinheiro para fazer teatro.
Conjugando o brilhantismo dum texto apoiado na estética e sonoridade do movimento artístico “manguebeat”, de Chico Science (meados da década de 90), com a capacidade interpretativa dos cinco actores e três músicos em palco – sublime Carolina Virgüez no “monólogo da visita guiada”, toda ela rigor, expressividade, humor e encantamento -, “Caranguejo Overdrive” é uma lição de teatro intensa e profunda, como um sopro vital. A energia que emana dum forte vínculo ao teatro experimental, a força da sua mensagem política e de intervenção e a riqueza das imagens que convoca, resultam em momentos de teatro únicos, modelares, inspiradores. Esta é uma daquelas peças que arrastam o espectador numa torrente emocional de palavras, gestos e ideias, obrigando-o a envolver-se numa realidade que também é sua, na certeza de que qualquer transformação social só ganha sentido como acto solidário. Manifesto de coragem, vibrante e libertador, “Caranguejo Overdrive” é a pedrada no charco duma sociedade que há muito perdeu o sentido da palavra “nós”, onde os indivíduos escavam cada vez mais fundo na lama, refugiando-se na dureza das suas carapaças quitinosas, aí permanecendo furtivamente à espera do seu momento. Tal como os caranguejos! |
TEATRO: “Longe”
Direcção e texto | Raquel S.
Interpretação | Margarida Gonçalves
Cenografia | Catarina Barros
Música | José Alberto Gomes
Produção | Noitarder – Associação Cultural
FITEI 2018 – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
“Longe”, de Raquel S., abriu a 41ª edição do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica sob os melhores auspícios. No Auditório do Teatro do Campo Alegre, sozinha em palco, Margarida Gonçalves agarrou o público “pelas tripas” ao invadir os domínios do hiper-realismo, num monólogo intenso e carregado de emoção. Minimalista, o cenário pode muito bem ser o de uma sala de aula onde decorre uma dissertação científico-filosófica, o palco a estender-se inteligentemente para lá das suas linhas de demarcação e a fazer com que o público se torne parte integrante da peça. No intimismo desse espaço restrito (que a grande proximidade entre actriz e público acentua), “professora” e “alunos” congregam interesses e esforços, irmanados num mesmo propósito, o de perceber os contornos e os limites da memória ou o que fica de alguém próximo que morreu.
Baseada num texto engenhosamente trabalhado, a peça remexe no mais íntimo de cada um, ao encontro de matéria que preencha o vazio da perda. Apoiando-se em palavras, ideias, artigos ou histórias de figuras ilustres – Rimbaud, Freud, Susan Sontag, Proust, Samuel Beckett, Herberto Hélder ou Edgar Allan Poe – ou de simples “apontamentos de aluno desconhecido de uma aula da disciplina de Medicina Legal”, Raquel S. constrói uma peça que cruza vários campos, trabalhando a temática da morte com o distanciamento que se exige mas aproximando-se o suficiente para a tornar matéria palpável de análise e reflexão. Uma reflexão que, no imediato, conduz o espectador ao encontro das suas próprias vivências e memórias, dos seus medos e fantasmas, vergado ao peso de um enorme ponto de interrogação.
Uma cortina que divide o palco, ora funciona como um adereço que sugere a “passagem” do lado material para o imaterial, do campo dos vivos para o dos mortos (e vive-versa), ora sublinha as inúmeras dimensões duma discussão que nunca se afasta do valor da memória, do sonho ou da fantasia, enquanto rastos de vidas que já não voltam. Convidado a “passear” pelos cenários interiores do “eu” e a partilhar as dúvidas que se avolumam em torno do que é real ou apenas aparente (a fotografia, entendida como “verdade”, alcança neste contexto o valor de insofismável embuste), o espectador acaba mergulhado na certeza de não ter já certeza alguma. No limite, com “Longe”, o teatro exerce de forma superior a sua função transformadora, criando um forte impacto emocional e levantando questões a exigir respostas. A isto não é alheio – importa sublinhar – a notável representação de Margarida Gonçalves, uma verdadeira máquina de “dizer texto”, sem quebras no ritmo e na dinâmica em palco e, com isso realçando a qualidade literária da peça e garantindo o empolgamento crescente do público. Bravo!
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TEATRO: “Montanha-Russa”,
de Inês Barahona e Miguel Fragata Encenação | Miguel Fragata Dramaturgia | Inês Barahona Texto e letras | Miguel Fragata Música original | Hélder Gonçalves Interpretação | Anabela Almeida, Bernardo Lobo Faria, Carla Galvão, Miguel Fragata, Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo, Miguel Ferreira, Nuno Rafael Produção | Formiga Atómica Teatro Nacional de S. João 09 Jun 2018 | sab | 19:00
Ter 15 anos e querer fugir de casa para dar um beijo no rapaz da feira. Ter 16 anos e perder a voz de menino e passar a ter uma voz de cana rachada. Ter 13 anos e, de um dia para o outro, ser uma menina crescida e não se sentir nada confortável naquele corpo que é seu. Ter 18 anos e uma vontade louca de conhecer o mundo e não ficar parado. A adolescência é aquele período da vida em que deixamos de ser crianças e ainda não somos adultos. Em que os pais não nos compreendem e só queremos estar com os nossos amigos. Ou então ficar fechados no quarto a ouvir aquela música muitas vezes. Em que precisamos desabafar com alguém a angústia de não sabermos bem quem somos e de nos enrolarmos na intimidade de escrever um diário.
Ser adolescente é viver numa permanente montanha-russa. É esta a imagem que atravessa o espetáculo criado por Inês Barahona e Miguel Fragata, um musical destinado a todos os públicos onde se impõem temas como a amizade, a descoberta, os ajustes de contas, a agressividade e a passividade em relação à família, uma relação muito forte com os amigos ou a pertença a um grupo. As quatro histórias estão unidas por uma montanha-russa, a Ciclone, a maior alguma vez construída, com 26 metros de altura. Nesta fase da vida, em que se vai “do topo do mundo ao lugar mais profundo”, como diz uma das canções, as vivências e as angústias que os quatro jovens experimentam em palco não destoam das que os adolescentes vivem na realidade. Ali se fala do primeiro cigarro (e de todas as primeiras vezes), da vontade de morrer, das loucuras, do medo de crescer, de muito mais.
Mergulhando vertiginosamente na adolescência, retirando-a do lugar dos lugares-comuns e procurando aproximá-la da dimensão da intimidade, “Montanha-Russa” retrata a vivência e as preocupações, os picos de euforia e de depressão da adolescência, viajando “do topo do mundo ao lugar mais profundo”, como diz a “Canção da Primeira Vez”, interpretada por Manuela Azevedo. Abrindo um parêntesis, importa dizer que, se os músicos em palco são “meio espectáculo”, Manuela Azevedo é um espectáculo por completo, de tal forma a peça gira em torno de si, da sua capacidade musical mas, sobretudo, teatral. Tal como na vida dos adolescentes, a música (composta por Hélder Gonçalves) tem em “Montanha Russa” um papel importantíssimo, podendo ser superdepressiva ou mostrar-se “a abrir”, ajudando a acompanhar o crescimento destes adolescentes e levando o público “para outras zonas, mais densas”. Crescer é como andar numa montanha-russa: queremos que aquilo acabe depressa mas, depois, quando acaba, gostaríamos de poder continuar. “A viagem vai continuar? Será que isto não vai parar?”
[Foto: Filipe Ferreira]
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CERTAME: Imaginarius | Festival
Internacional de Teatro de Rua
Santa Maria da Feira
24 a 26 Mai 2018
Com odisseias, viagens, questionamentos, inquietações e dúvidas em mente, o Imaginarius chegou à sua 18ª edição. Ao longo de três dias, Santa Maria da Feira transformou-se no palco mundial do teatro de rua, com 37 companhias / projectos artísticos, mais de 300 artistas de 17 países, 195 apresentações / intervenções artísticas e 170 horas e conteúdos de programação a encherem a cidade de vida e animação e a atraírem milhares de pessoas às suas ruas e praças. Com palcos espalhados por toda a cidade, foi no Rossio que pulsou com mais força o coração do Festival, aí estando sedeados os projectos dinamizados pela Salto International Circus School, com as exibições de técnicas e as oficinas de novo circo a cativarem sobretudo os mais novos e a induzir neles a vontade de fruir e de descobrir outras formas de ver e sentir o fantástico universo do circo. A Arte.Descoberta, com as suas propostas “Ilustrar com linhas e Agulhas” e “Desenhar no Imaginário”, foi igualmente um catalisador de vontades e interesses de miúdos e graúdos. Ainda no Rossio, foi possível acompanhar o resultado do projecto que Daniel Seabra e Noé Quintela desenvolveram com os alunos de Animação Sociocultural da Escola Secundária Coelho e Castro e intitulado “Fractions of a Whole”, um espectáculo que soube combinar da melhor forma o teatro, o circo e a dança, proporcionando a criação de quadros de grande beleza estética.
Detalhando algumas propostas do Festival, V.O.G.O.T. , do Duo Masawa [Argentina / Itália], trouxe-nos um espectáculo de circo e dança bem arquitectado, um cheirinho de “pecado original” na sua proposta dramatúrgica, embora esbarrando numa coreografia pobre, demasiado lenta e repetitiva, fazendo com que os 20 minutos parecessem uma eternidade. Já a Compagnie du Paon [Turquia / Suiça] ofereceu ao público a peça “Hayali” (“imaginário”, em turco), um belíssimo espectáculo de fusão entre a dança e o teatro, apoiado em adereços muito simples – quatro caixas de madeira – para evidenciar a complexidade das relações humanas e o seu mais do que instável equilíbrio. Também na área da Dança, os espanhóis da Cia. Si Tu T’Imagines mostraram “Sommes Nous?”, uma apresentação enérgica, ritmada e divertida dos estados da alma, numa revisitação do amor ou do desprezo, da esperança ou da fantasia, do sonho ou da posse.
Num espectáculo com o mesmo nome, o Cirk Biz’Art [França] proporcionou alguns dos mais divertidos momentos desta edição do Imaginarius, propondo uma performance que fundiu teatro e circo e viveu, em grande medida, da interacção com o público. Inesquecíveis as sequências do combate de boxe, do número de sapateado ou da levitação, não menos inesquecíveis o confisco dos telemóveis ou a paixão tórrida entre a actriz e um espectador. Com “Tartf Lkhobz”, levada a cabo pela Accroche Toi Company [Marrocos], as causas sociais e políticas fizeram questão de marcar presença no Festival, a acção a desenrolar-se num estaleiro de obras, os actores a fazerem um aproveitamento notável do espaço, dos materiais e das suas próprias qualidades físicas e técnicas para oferecerem momentos de teatro, dança, parkour e circo ricos de significado, belos e intensos na sua concepção cénica e dramatúrgica. De causas nos falou também o espectáculo “1986”, do colectivo Skandalisi Dance [Rússia]. 1986 é o ano do desastre nuclear de Chernobyl e este espectáculo intenso e belo reflecte as preocupações ambientais do grupo, convocando a reflexão sobre os efeitos da intervenção do homem na natureza e os desafios que se colocam à sobrevivência da espécie.
Pese embora a honestidade das propostas, outros espectáculos houve que se revelaram menos interessantes ou apelativos, quer pelos assuntos abordados, quer pelas opções dramatúrgicas e cénicas, sendo o concerto dos holandeses Blaas of Glory, na tarde de sábado, um exemplo flagrante de desadequação dum espaço a um espectáculo, deitando por terra fundadas expectativas do público num momento bem passado. “Houston, We Have a Problem”, do português Telmo Ferreira, será outro espectáculo menos conseguido, com uma proposta de teatro físico recheada de clichés banais, pouco imaginativo e com um par de actores inseguros. O mesmo se poderá dizer dos espectáculos “Moon” e “Gigante”, respectivamente dos 2Faced Dance Company [Reino Unido] e La Pequeña Victoria Cen [Espanha]. Uma última nota para dar conta do espectáculo “Hanno”, dos portugueses Rina Marques & Rui Paixão, o grande momento do Festival e, entretanto, já abordado em mensagem anterior [AQUI].
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TEATRO FÍSICO | DANÇA | MÚSICA:
“Hanno”
Criação e Dramaturgia | Rina Marques e Rui Paixão
Interpretação | Rina Marques e Rui Paixão
Criação Musical e Música ao Vivo | Cecília Costa
Uma Criação Imaginarius 2018
Santa Maria da Feira
25 Mai 2018 | sex | 19:10
É um final de tarde ameno e ruidoso em Santa Maria da Feira mas, no Rossio, os ambientes são os da noite mais negra, um silêncio de cortar à faca, o nevoeiro a envolver a terra num abraço frio e húmido. Ao desterro dum lugar sem nome chega um carro. No seu interior, um casal discute. Não se ouve o que dizem, qual o motivo da zanga, mas braços e corpos agitam-se, convulsos, descarregando no outro toda a raiva do mundo. A briga adensa-se, o nevoeiro também. De súbito um som seco estala. Depois outro, e outro, e outro...
Aliando dança, teatro físico e música (vibrante percussão acústica e electrónica, desenhada e interpretada ao vivo por Cecília Costa), “Hanno” é uma história intemporal de amor e ódio. As emoções mais primárias são trazidas para primeiro plano de forma crua e intensa, ora abrindo-se em gestos de ternura, ora alimentando a violência e o confronto que acabará por reduzir as personagens à sua condição animal, literalmente. A configuração do “palco”, com tanto de comprido como de estreito, força a aproximação física entre público e actores, propiciando um clima de tensão a raiar o insustentável, o drama a desenrolar-se à distância de um braço. Em estado de inquietação e angústia crescentes, o espectador é obrigado a tomar partido, mergulhado também ele no pesadelo desta relação.
Exímios na forma como vestem a pele das suas personagens em palco, Rina Marques e Rui Paixão ofereceram ao vasto público presente no Rossio da Feira um espectáculo poderoso e particularmente apelativo do ponto de vista visual. A forte componente de dança contemporânea é evidenciada de forma sublime por Rina Marques, toda ela gestualidade versátil, graciosidade e harmonia, o contraponto perfeito à exuberância física do teatro de Rui Paixão, à sua mobilidade, polivalência e, sobretudo, expressividade. Um e outro encarnam uma relação tempestuosa, num ambiente tornado opressivo por uma inteligente e rigorosa concepção dramatúrgica, a remeter para os grandes clássicos do teatro, de “O Som e a Fúria” a “Há Lodo no Cais”, de William Faulkner a Tennessee Williams. O melhor espectáculo desta edição do Imaginarius 2018.
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TEATRO: “Correspondência -
Projecto Artístico de J. D.”
Dramaturgia | Leandro Ribeiro com a comunidade ovarense, a partir de cartas de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (pseudónimo Júlio Dinis e heterónimo Diana de Aveleda)
Autoria e Encenação | Leandro Ribeiro
Interpretação | Clara Oliveira e Leandro Ribeiro
Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense
17 Mai 2018 | qui | 19:00
Assumindo-se como “uma performance teatral em que a troca de correspondência gera dramaturgia”, “Correspondência – Projecto Artístico de J. D.” surge no âmbito dum Mestrado em Artes Cénicas da ESMAE e constrói-se a partir de cartas de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (pseudónimo Júlio Dinis e heterónimo Diana de Aveleda). Em formato de visita guiada, o espectáculo convida o público a percorrer a casa onde, no verão de 1863, o escritor se instalou por motivos de saúde. Uma casa onde Júlio Dinis, vencida a estranheza dos momentos iniciais, terá sido feliz, rendendo-se à pacatez rural de Ovar, observando em detalhe os vareiros e procurando saber as histórias das suas vidas, para mais tarde vir a inspirar-se no material recolhido para compor episódios dos seus romances, o primeiro dos quais, “As Pupilas do Senhor Reitor”, foi publicado em 1866.
Se as cartas escritas por Júlio Dinis desempenham um papel primordial na construção dramatúrgica da peça, não menos importantes são as mensagens resultantes da troca de correspondência com cerca de três dezenas de ovarenses, tantos quantos aceitaram o repto de responder a Leandro Ribeiro, escudado no anonimato sob as figuras dum angustiado “Joaquim” e duma revolucionária “Diana”. Em termos da narrativa, o resultado é surpreendente, não apenas pela maneira inteligente como a correpondência (a actual e a antiga) se articula entre si, como pela forma como os temas são tratados – Ovar e as suas gentes, por um lado e, por outro, o estado da arte. Leandro Ribeiro mostra-se exímio neste exercício de aproximação de temas e épocas, obrigando o espectador a recuar no tempo para lhe mostrar quão ténue é a linha que separa as preocupações de agora daquelas de há 150 anos atrás.
Percorrendo todo o espaço do Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense, o espectáculo lança mão duma série de possibilidades cénicas de enorme criatividade e impacto visual, do simples monólogo ao pedido de colaboração do público na construção dum castelo de cartas, na recriação da sequência da chegada do correio à vila ou, já na parte final, a privar com o escritor / actor na intimidade do seu leito. A intensidade dramática cresce na proporção directa da cumplicidade que se vai estabelecendo com o público, sendo o final – sob a forma de conversa – um momento de enorme emoção, pela adesão total do público. Um momento que suscita uma reflexão séria sobre o papel das cartas nos dias de hoje, esses objectos agradáveis, que nos falam das coisas do coração, mas cujo desuso nos leva cada vez mais a olhar para elas com os olhos da desconfiança e da suspeição.
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TEATRO: “O Senhor Pina”,
de Álvaro Magalhães
Encenação | João Luiz
Dramaturgia | Maria João
Reynaud
Cenografia | João Calvário
Interpretação | Patrícia
Queirós, Jorge Mota e Gilberto Bernardes (músico)
Produção | Pé de Vento, Teatro
Nacional S. João
Teatro Carlos Alberto
11 Mai 2018 | sex | 15:00
“Que bom é pensar em outras
coisas
E olhar para as coisas noutra
posição.
As coisas sérias que cómicas que
são
Com o céu para baixo e para cima o chão.” A completar quatro décadas de actividade, a companhia de teatro Pé de Vento leva à cena “O Senhor Pina”, homenageando o poeta, cronista e autor de livros para a infância, Manuel António Pina, um homem que escreveu para a companhia mais de 30 originais. O espectáculo é, pois, uma bela e sentida homenagem ao cúmplice de inúmeras aventuras, ao companheiro incansável de inesquecíveis jornadas, ao amigo de todas as horas.
Adaptação para o palco do livro
com o mesmo nome, escrito por Álvaro Magalhães já após a morte
de Manuel António Pina, “O Senhor Pina” revela, com ternura e
ironia, pedaços da vida do escritor, aqui acompanhado pelo seu
alter-ego Puff, “um urso com poucos miolos”, saído das
páginas de “As Aventuras de Joanica Puff”, um clássico da
literatura para a infância de A. A. Milne ao qual Manuel António
Pina se referia constantemente como o seu livro preferido. “O
Senhor Pina” conta-nos “um bocadinho” desta grande história
cheia de pequenos segredos, “sonhos de glória, esperanças,
ânsias”, recuperando o tom irónico e provocador que
caracterizava Manuel António Pina, um homem que gostava de
brincar com as palavras.
Sente-se neste espectáculo a enorme
cumplicidade, por um lado, entre Manuel António Pina e Álvaro
Magalhães, dando origem a um texto riquíssimo de sentido e
emoções e, por outro lado, entre a parte escrita e a seu
consequente cénica, fruto duma interpretação sóbria de Jorge
Mota e Patrícia Queirós, num palco simultaneamente casa e rua,
resultado dum trabalho cénico de grande simplicidade e beleza. É
uma peça onde as palavras são colocadas na brincadeira,
revelando o escritor e o seu quotidiano, a forma como via o mundo
e lidava com as mais variadas situações. Escutar as palavras de
Álvaro Magalhães na voz dos actores resulta numa aproximação à
figura de Manuel António Pina, tranquilamente sentado no seu sofá
preferido, rodeado de gatos. Manuel António Pina morreu, mas o
Senhor Pina continua connosco.
“É tudo verdade e não. E é tudo
imaginação.”
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TEATRO: “Ivone, Princesa de
Borgonha”,
de Witold Gombrowicz
Tradução | Luisa Costa Gomes
Encenação | António Pires
Cenografia | João Mendes Ribeiro
Interpretação | Maria João Luís, Marcello Urgeghe, João Barbosa, Mário Sousa, Alexandra Sargento, Hugo Mestre Amaro, Cláudia Alfaiate, Nuno Casanovas, Francisco Vistas e Carolina Campanela
Produção | Teatro do Bairro
Teatro Nacional S. João, Porto | 15 Abr 2018 | dom | 16:00
Podemos resumir a história tragico-cómica de Ivone em poucas palavras. Herdeiro do trono, o Príncipe Filipe conhece uma jovem que considera repulsiva, uma aventesma. Embora seja incapaz de suportar a presença dessa mulher desde o primeiro minuto, tem consciência que o ódio que nutre pela pobre Ivone é, mais do que injusto, inaceitável. Profundamente dividido, dispõe-se a contrariar a sua própria natureza e pede a jovem em casamento. Chegada à corte, Ivone torna-se imediatamente num elemento disruptivo. A sua presença muda, o terror que se estampa no seu rosto, as suas desgraças naturais, fazem com que todos vejam nela o reflexo das suas próprias falhas e deficiências, monstruosidades e pecados. É preciso pôr um fim ao pesadelo, uma pedra sobre o assunto, acabar com Ivone. Mas fazê-lo com elevação, fazê-lo “por cima”!
Comédia? Drama? Farsa? Conto de fadas? É difícil classificar “Ivone, Princesa de Borgonha” de forma assim tão linear. Imaginativa e provocadora, a peça revela-se duma riqueza e actualidade extraordinárias, apontando o dedo acusador aos poderosos deste mundo, ao mesmo tempo que vai desmontando questões tão pertinentes como inteligência e poder, estatuto e competência, os espaços de manobra, as bases do poder, auto-confiança e domínio ou, ainda, a questão do poder como um vício. A peça é também uma reflexão na ampla esfera das liberdades, onde tudo se permite a quem detém o poder e tudo é negado aos mais pobres e desfavorecidos, obrigados ao mutismo e ao vazio de ideias, habituados a que os poderosos pensem pela cabeça de todos e falem pelas suas próprias bocas.
Para uma representação correcta de “Ivone, Princesa de Borgonha”, Witold Gombrowicz chamava a atenção para o facto de os heróis da peça serem pessoas normais, mas que se encontram numa situação anormal. “O espanto, a insegurança, a atrapalhação e o embaraço que experimentam face à situação devem ser sublinhados de acordo com o texto”, dizia. É precisamente isto que a encenação de António Pires evidencia, com o colectivo do Teatro do Bairro a demonstrar uma notável desenvoltura interpretativa, com destaque para as representações de Maria João Luís e Marcello Urgeghe. Para aqueles que, até ao próximo domingo, tenham oportunidade de se deslocar ao TNSJ, prometida está uma excelente sessão de teatro onde, no limite, o espectador será confrontado com a questão da convencionalidade versus liberdade. Se a primeira, sendo necessária como forma de tornar a pessoa reconhecida socialmente, a condiciona naquilo que é da sua natureza em surpreender-se, experimentar, imaginar, a segunda, por mais atraente que seja enquanto horizonte de possibilidades infindáveis, é também o caos. Pode-se alcançá-lo por um momento, mas não se pode viver nele eternamente.
[Foto: TNSJ / facebook.com/TeatroNacionalSaoJoao]
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TEATRO: “Nathan, O Sábio”,
de Gotthold Ephraim Lessing
Tradução | Yvette K. Centeno
Encenação | Rodrigo Francisco
Cenografia | Pedro Calapez
Interpretação | André Gomes, André Pardal, Guilherme Filipe, João Farraia, João Tempera, Leonor Alecrim, Luís Vicente, Maria Rueff, Tânia Guerreiro
Produção | Companhia de Teatro de Almada
Teatro Nacional S. João, Porto | 25 Mar 2018 | dom | 16:00
Estamos na Jerusalém do século XII, acabada de conquistar pelo muçulmano Saladino, e onde vivem o judeu Nathan e a sua filha adoptiva, a cristã Recha. A jovem acaba de ser salva de um incêndio por um jovem cruzado, que a pede em casamento. Mas nem o tolerante Nathan – que demonstra ao sultão Saladino, através da célebre parábola dos anéis, que a religião perfeita é aquela que torna os homens melhores – pode aceitar essa união. Na verdade, existem outros laços a unir as duas jovens personagens apaixonadas: laços fraternos, como se as diferentes religiões tivessem, no fundo, a mesma origem.
Publicado em 1779, “Nathan, O Sábio” é um dos textos basilares do teatro ocidental, através do qual o seu autor veicula alguns dos princípios em que assentou o iluminismo alemão, como o da tolerância religiosa e civilizacional. A sua estreia absoluta em Portugal, na tradução de Yvette K. Centeno, representa mais um passo importante na divulgação das peças-matrizes da dramaturgia mundial junto do público português, algo para o qual a Companhia de Teatro de Almada muito tem contribuído ao longo do seu percurso artístico de quarenta anos.
Mais de dois séculos volvidos sobre a sua redacção, “Nathan, O Sábio” revela-se duma actualidade e acutilância extraordinárias ao interrogar o espectador sobre a forma como entende e sente aqueles que pensam de maneira diferente da sua. Demonstrando uma enorme convicção em palco, os actores contribuem de forma brilhante para reforçar este propósito, cativando o público e levando-o a aderir à peça com o interesse que ela merece. Destes, destacaria André Pardal, no papel do templário perturbado e, naturalmente, Maria Rueff, representando Daya, a ama. A forma como os quadros se vão sucedendo, ora deixando tudo em aberto, ora resolvendo as várias situações, revela-se deveras inteligente. A apropriação do espaço do palco é dinâmica e muito valorizada pelo excelente trabalho de luz. A completar o todo, as telas de Pedro Calapez, servindo de fundo a um palco despido de adereços – à excepção dum tabuleiro de xadrez, numa das cenas -, conferem a nota certa de intimidade ou distanciamento. Embora não responda a todas as questões - nem será essa, por certo, a sua intenção -, a peça despe-se de falsos moralismos, apontando os caminhos do livre pensamento e do respeito pelo outro, algo tão raro nos dias que correm.
[Foto: Companhia de Teatro de Almada / ctalmada.pt/new/nathan-o-sabio-2/]
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TEATRO: “O Santo e a Porca”,
de Ariano Suassuna
Versão e Encenação |
Alfredo Correia
Interpretação | José Maria
Silva, Olívia Martins, David Ferreira, Ana Carvalho, Fernando
Gomes, Lourdes Costa e Cesário Costa
Produção | Companhia Teatral
de Ramalde – Associação 26 de Janeiro
Casa da Contacto, Ovar | 10
Mar 2018 | sáb | 21:45
O centro da história é Eurico,
avarento, devoto de Santo António, assombrado pela ideia de que
todos querem roubá-lo. Por isso, guarda em sua casa uma porca de
madeira onde esconde o dinheiro anos e anos. Tantos anos que o
dinheiro acaba por perder o valor. Ao redor de Eurico estão a
filha, Margarida, a irmã solteirona Benedita, Vicente, fazendeiro
rico e viúvo, Diogo, filho do fazendeiro, disfarçado de
corcunda, e dois criados – Pinhão, criado de Vicente e noivo de
Carolina. Esta, criada de Eurico, é a personagem que desenvolve
toda a intriga. Entre confusões, encontros e desencontros,
formam-se três casais apaixonados e sobra um velho sovina, com a
sua porca e o seu santo.
Imitação Nordestina de Plauto,
“O Santo e a Porca” é uma peça escrita pelo brasileiro
Ariano Vilar Suassuna (1927 – 2014), levada à cena pela
primeira vez no Rio de Janeiro, pelo Teatro Cacilda Becker, em
1958. Trata-se duma comédia de costumes contada por alguém que
manteve um contacto profundo e amoroso com a vida. Um realista,
como o próprio Suassuna se considerava, mas não à maneira
naturalista — que falseia a vida — mas à maneira da
maravilhosa literatura popular brasileira, que transfigura a vida
com a imaginação para lhe ser fiel. Com “O Santo e a Porca”,
o que Suassuna procurou atingir foi, se não a verdade do mundo,
pelo menos a verdade do seu mundo, do mundo que lhe foi dado. Um
mundo de sol e de poeira, como o que conheceu na sua infância,
com actores ambulantes ou bonecos de mamulengo, representando
gente comum e às vezes representando actores – com cangaceiros,
santos, poderosos, assassinos, ladrões, palhaços, prostitutas,
juízes, avarentos, luxuriosos, medíocres, homens e mulheres de
bem – e no qual eram presença constante os seres da vida mais
humilde, as pastagens, o gado, as pedras, o sol e o céu.
Dar a ver uma peça tão rica de
simbolismo, significado e alcance é, desde logo, mérito desta
Companhia Teatral de Ramalde – Associação 26 de Janeiro que,
sob a batuta de Alfredo Correia, soube ilustrar, com enorme
empenho e amor ao teatro, esta hilariante comédia de costumes.
Secundada por um bom naipe de actores, Olívia Martins mostrou-se
irrepreensível no papel de Carolina, enriquecendo-o com os modos
e o sotaque marcadamente tripeiros e arrancando saborosas palmas e
gargalhadas ao público que, numa noite tempestuosa, esgotou por
completo a Casa da Contacto. Finalmente, mérito também da
Companhia de Teatro Água Corrente de Ovar que, desde 2002,
insiste em “Dar Teatro”, mantendo o contacto do público com o
teatro fora dos meses em que ocorrem as suas grandes iniciativas
teatrais. Obrigado a todos e parabéns ao Teatro!
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TEATRO: “Actores”,
de Marco Martins
Encenação | Marco Martins
Interpretação | Bruno
Nogueira, Carolina Amaral, Miguel Guilherme, Nuno Lopes, Rita
Cabaço Produção | Arena Ensemble, São Luiz Teatro Municipal,
Teatro Nacional S. João e Centro de Arte de Ovar
Centro de Arte de Ovar | 25
Fev 2018 | dom | 17:00
Após a sua estreia no São Luiz
Teatro Municipal e passagem pelo Teatro Nacional de S. João, foi
agora a vez do Centro de Arte de Ovar receber a peça “Actores”,
com dramaturgia e encenação de Marco Martins. Casa cheia para
três dias de espectáculo – uma raridade no panorama concelhio
- e um público em delírio, absolutamente rendido à qualidade da
peça e às interpretações de Bruno Nogueira, Carolina Amaral,
Miguel Guilherme, Nuno Lopes e Rita Cabaço, são as marcas
distintivas deste verdadeiro acontecimento cultural por terras de
Ovar.
Baseada em relatos
autobiográficos dos intérpretes – à excepção de Carolina
Amaral que interpreta as vivências de Luisa Cruz, actriz que
integrava inicialmente o projecto –, incluindo textos que os
próprios já representaram ao longo da sua carreira, “Actores”
lança um olhar retrospectivo sobre a profissão de palco e sobre
os actores, identificados como “atletas emocionais”. Em cena,
os cinco dão corpo à proposta de Marco Martins, levando o
espectador a olhar para o trabalho de actor de forma
desconstruída, como se de um ensaio aberto ao público se
tratasse. Vemos, por exemplo, os tiques que os actores têm
durante o aquecimento, vemo-los de fato-de-treino, com papéis nas
mãos e vemo-los a repetirem o mesmo texto com diferentes
entoações, percorrendo a paleta de emoções humanas na íntegra.
Recuperando algumas das muitas
memórias, os actores lembram vitórias e derrotas, chamam para
primeiro plano o início da sua caminhada na arte de representar,
falam de audições em que participaram e expõem abusos de
encenadores, realizadores e professores de teatro, recordam a
figuração, os anúncios de TV ou as festas privadas que têm,
por vezes, de suportar. Ao de cima vem o desgaste emocional que a
profissão acarreta – não é por acaso que se fala em “desistir
e partir para outra”, se descrevem pesadelos, se contam
histórias de “brancas”. São três horas em que acompanhamos
o trajecto daquelas cinco personagens, fazendo de si próprias ou
do “vizinho do lado”. São histórias e são memórias que
fazem rir e chorar. É o jogo do gato e do rato entre o real e o
ficcionado, na certeza de que é no meio que está a virtude. É o
teatro na sua condição natural, centrípeto, máquina que sofre
e faz sofrer, que contraria, que contagia. É o teatro no seu
melhor!
[Foto: Jorge Gomes, Câmara
Municipal de Loulé / facebook.com/cineteatrolouletano/]
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TEATRO: “O Grande Dia da
Batalha”,
de Máximo Gorki e Jorge Silva
Melo
Encenação | Jorge Silva Melo
Interpretação | Inês
Pereira, Ricardo Aibéo, Ruben Gomes, André Loubet, Vânia
Rodrigues, Simon Frankel, José Neves
Produção | Artistas Unidos
Teatro Nacional D. Maria II |
10 Fev 2018 | sab | 21:00
“Li a tua peça [Albergue
Nocturno]. É nova e inegavelmente boa. O segundo acto é muito
bom: é o melhor, o mais forte, e quando estava a lê-lo,
especialmente o fim, quase dancei de alegria. O tom é sombrio,
opressivo: o público não familizarizado com estas temáticas,
sairá do teatro sobressaltado (...)”. Se cito este excerto da
carta que Anton Tchekov escreveu a Gorki, seu amigo, é porque ele
resume, em parte, aquilo que senti ao ver “O Grande Dia da
Batalha”, peça escrita “a duas mãos” por Máximo Gorki e
Jorge Silva Melo e em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em
Lisboa.
Quando, em 1902, Máximo Gorki
escreveu “Albergue Nocturno”, já tinha escrito contos,
novelas, um grande romance (“Foma Gordaiev”), já era um
escritor admirado, já tinha escrito aquilo a que hoje se chama
grandes reportagens, já atravessara a Rússia, a Ucrânia, já
tinha sido sapateiro, atravessara o Volga a trabalhar nas cozinhas
de um navio, já fora expulso da universidade, já pescara no Mar
Cáspio, já estivera preso uma, duas, três vezes, conspirador,
já andara pelas estradas como os miseráveis, vagabundos,
profetas e ladrões, já conhecera os Humilhados e Ofendidos”,
já lera “Os Miseráveis”, era um deles. Daí que todo este
mundo salte para o palco em “O Grande Dia da Batalha” e, com
ele, nós mesmos, obrigados a olhar para tanta gente, a viver os
destinos diversos de personagens atiradas para ali, suspensas no
tempo, algumas apenas defendendo ideais.
Ao prolongar o gesto de Gorki,
Jorge Silva Melo injecta as nossas ruas, as nossas cidades, neste
sórdido Albergue Nocturno, ao encontro dos desgraçados atirados
para o lixo nas primeiras metrópoles e agora atirados para o lixo
de Schengen e outras globalizações. São personagens abandonas
pela industrialização, abandonadas pela pós-industrialização,
morrendo de drogas como outrora de tuberculose. São muitos, cada
vez mais. São os refugiados, os abandonados, os excluídos. São
os protagonistas da história dos tempos modernos, os mesmos que
protagonizaram a história há 115 anos atrás e antes e depois e
sempre. É Gorki amplificado, revisto e actualizado, mas sempre
Gorki. Mas é também o recuperar do “teatro com a comunidade”,
do teatro da boa consciência social, da pura transcrição das
falas das vítimas, sem mediações, nu e cru. Do bom teatro,
portanto!
[Texto baseado no Programa da
peça. Fotografia de Jorge Gonçalves, em
http://artistasunidosnacapital.blogspot.pt/]
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TEATRO: “Elizabeth
Costello”,
de J. M. Coetzee
Tradução | Maria João Andrade
Direção Artística e Encenação
| Cristina Carvalhal
Interpretação | Cucha
Carvalheiro, Bernardo Almeida, Luís Gaspar, Rita Calçada Bastos,
Silvia Filipe
Produção | Causas Comuns
Teatro Nacional S. João, Porto |
28 Jan 2018 | dom | 16:00
Elizabeth Costello, uma escritora
no final da vida, espera em frente ao “grande portão”. Para
entrar, tem de fazer uma declaração em tribunal sobre as suas
crenças. Mas o seu argumento de que uma escritora – uma
“secretária do invisível”, diz ela, citando o poeta Czesław
Miłosz – não deve ter crenças, não é bem acolhido pelos
juízes. Na expectativa de uma segunda audiência, Elizabeth
discute com outras personagens aquilo a que prefere chamar as suas
convicções, relativamente a temas como o amor, o mal, a arte e a
razão. No entanto, quando chamada novamente a depor, evita estes
tópicos solenes, reduzindo a sua alegação à história das
pequenas rãs que surgem, na estação das chuvas, no leito do rio
da sua infância.
“Tenho crenças mas não
acredito nelas”, constatação dilacerante de Elizabeth Costello
na sequência da sua muito reformulada declaração inicial, pode
ser o mote desta reflexão sobre a condição humana naquilo que
nela há de convicção e dúvida. Será legitimo comparar o
tratamento dado aos animais para alimentação nos dias de hoje
com os campos de concentração do Holocausto? Poderá um escritor
africano ser reduzido a uma personagem figurativa destinada a
animar os tempos mortos num Cruzeiro de luxo? Como será possível
convocar Eros quando o alvo das caricias orais é o sexo inane dum
moribundo? O que terá a filosofia a dizer sobre o sentir do homem
ao imaginar-se um morcego? Que valor terão as experiências
sociais em torno da “humanização” do macaco? Que relação
haverá entre arte africana e um Cristo crucificado? No
incontornável convívio entre as ideias e o real, é baseada em
interrogações desta natureza que a peça se afirma, criando um
efeito de absurdo que remete para Kafka à medida que interpela o
espectador. Dos diálogos sobrará a impressão de que “acreditar
pode ser apenas a fonte de energia que se anexa a uma ideia para a
fazer funcionar”.
Transpor para o palco uma obra
tão rica e complexa foi o desafio aceite por Cristina Carvalhal e
que resulta numa peça de enorme força e sobriedade, de tal forma
a encenação se mostra eficaz e os actores são convincentes nas
peles que vestem. Se é de ideias que se trata e da sua discussão,
então discuta-se. Arrebatado pela clareza e acutilância dos
diálogos e pelo vigor e empenho das personagens em palco, ao
espectador não resta outra solução que não a de tomar partido
e de questionar, questionando-se. Com um desenho cénico onde,
apesar de tudo, se percebem alguns pontos fracos (a sequência do
Cruzeiro é de manifesto mau gosto), “Elizabeth Costello” tem
na intensidade do texto e na capacidade interpretativa – Cucha
Carvalheiro é simplesmente brilhante – a sua grande força.
Interrogadora, provocatória, esta é uma peça que, como poucas,
coloca o espectador do lado dos “activos”. Um excelente
exercício de teatro!
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TEATRO: “Jardim Zoológico
de Vidro”,
de Tennessee Williams
Encenação | Jorge Silva
Melo
Interpretação | Isabel Muñoz Cardoso, João Pedro Mamede, Guilherme Gomes e Vânia Rodrigues
Produção | Artistas Unidos
Cine-Teatro de Estarreja | 02
Dez 2017 | sab | 21:30
Numa entrevista concedida na
década de 1970, Tennessee Williams confessou ter descoberto a
escrita como uma forma de fugir a um mundo real no qual se sentia
“profundamente desconfortável”. Nascido em Columbus,
Mississippi, na casa do seu avô, o pastor local, Tennessee era
filho de Cornelius Williams, um vendedor de sapatos viajante,
alcoólico e viciado em apostas, e de Edwina Dakin Williams,
mulher de humor instável. Ao ambiente disfuncional, juntou-se a
difteria na infância, o que viria a fazer de Tennessee uma
criança particularmente frágil. Devido à doença, ficou um ano
fora da escola, tornando-se introspectivo e passando o tempo em
volta dos livros. Refugiou-se no quarto, que pintou de branco e
enfeitou com miniaturas de animais de vidro, o que mais tarde
viria a servir de inspiração para a peça “The Glass
Menagerie”.
Conhecida entre nós como “Jardim
Zoológico de Cristal” - nome agora vertido por Jorge Silva
Melo, encenador da peça apresentada pelos Artistas Unidos no
Cine-Teatro de Estarreja, para “Jardim Zoológico de Vidro” –,
“The Glass Menagerie” foi a primeira peça de Tennessee
Williams estruturada realmente em termos teatrais e aquela que, no
conjunto da sua obra, apresenta um cunho autobiográfico mais
vincado. Foi com ela que iniciou uma carreira de sucesso após uma
primeira apresentação em Chicago, em 1944, chegando no ano
seguinte à Broadway, onde se tornou rapidamente num estrondoso
êxito do público e da crítica. Desde então, “The Glass
Menagerie” não mais parou de subir aos palcos de todo o mundo,
quer pela dimensão humana dum texto que não perdeu actualidade –
e no qual cabe o próprio Tennessee, a figura dos progenitores e
ainda a sua irmã Rose, diagnosticada com esquizofrenia na
juventude -, quer pelo desafio que constitui a sua encenação e
representação.
É, pois, neste ambiente pesado,
claustrofóbico, feito de sonhos perdidos e futuros adiados, que
“Jardim Zoológico de Vidro” nos convida a mergulhar. A
encenação é rigorosa e a sua estruturação “cinematográfica”
respeita o princípio original da peça, embora Jorge Silva Melo
lavre num equívoco quando decide inserir legendas nalguns
momentos considerados chave, um artifício por demais inútil,
quase absurdo. Isabel Muñoz Cardoso mostra-se irrepreensível no
papel de Amanda Wingfield, voz surda que amplia o histrionismo da
palavra e do gesto. No papel de Tom e do narrador, João Pedro
Mamede é igualmente brilhante, sobretudo pela forma como combina
as duas personagens e nelas se desdobra. Já Guilherme Gomes e
Vânia Rodrigues, nos papéis de Jim O' Connor e Laura Wingfield,
saem ligeiramente fora desta equação, mostrando-se por demais
amorfos e pouco convincentes no diálogo final, no qual a peça se
condensa e “resolve”. Após o quase tédio daquela última
meia hora, restará ao espectador um texto de invulgar força e
qualidade e um par de momentos de grande teatro. O que não será
pouco nos dias que correm!
[Foto: Jorge Gonçalves /
publico.pt]
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TEATRO: “A Salvação de
Lutero”,
de Teresa Leite
Encenação | Manuel Ramos
Costa
Interpretação | Andreia
Lopes, António Ferreira, Dorinda Resende, Inês Oliveira, João
Barge, José Ferreira, Juliana Almeida, Laura Poças, Luis
Ribeiro, Manuel Ricardo, Margarida Martins, Teresa Leite e Tiago
Amaral
Produção | Contacto –
Companhia de Teatro Água Corrente de Ovar
Casa da Contacto | 25 Nov 2017
| sab | 21:45
[Clicar na imagem para ver mais fotos]
Colocando um ponto final na 24ª
edição do Festovar – Festival de Teatro de Ovar, a Companhia
de Teatro Água Corrente de Ovar estreou a sua 66ª produção, “A
Salvação de Lutero”, um texto de Teresa Leite com encenação
de Manuel Ramos Costa. Casa cheia na Casa da Contacto em mais um
momento alto da Companhia, para uma peça com um cunho muito
forte, quer na forma como retrata, dum ponto de vista histórico,
a vida e obra do reformista Martinho Lutero, quer no que suscita
de tomada de consciência e dúvida interior no tocante a algumas
questões candentes da prática católica.
Tirando partido dum cenário
simples mas altamente versátil, a peça distribui-se ao longo de
vinte e nove quadros que atravessam o percurso de vida de Martinho
Lutero, desde a recusa em aceitar o mercado de indulgências em
nome do Papa Leão X, até ao momento da sua morte, na sequência
duma visão onde a fé é posta à prova de forma particularmente
dura. A peça é atravessada por momentos de grande intensidade
dramática, como a protecção dada pelo Príncipe Frederico da
Saxónia e que permitiu a Lutero a tradução da Bíblia para
Alemão, a revolta dos camponeses que se saldou em mais de 100.000
mortos no curto espaço de três anos e ainda o casamento com
Catarina De Bora, de quem teve seis filhos.
Quando se celebram 500 anos da
afixação, no portal da capela de Wittemberg, das 95 teses de
Lutero acerca do poder e eficácia das indulgências, saúda-se a
iniciativa da Contacto em recordar os factos e relançar o debate
em torno de questões doutrinárias fracturantes no seio da Igreja
ainda nos dias de hoje. Sóbria e rigorosa na forma como
desenvolve a trama narrativa, “A Salvação de Lutero” junta,
harmoniosamente, a palavra ao canto e à dança, tomando conta do
público do primeiro ao último instante. Para tal, é decisiva a
forma como os actores, no seu conjunto, assumem os respectivos
papéis, transmitindo à peça uma enorme coerência e verdade.
Destes, é justo destacar José Ferreira, no papel de Lutero,
irrepreensível na entrega à personagem, incisivo na palavra,
convicto na fé. Uma peça de grande atualidade e que marca, da
melhor forma, os 34 anos duma Companhia cada vez mais empenhada em
dar a ver teatro. E teatro do bom!
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TEATRO: “Canas 44”
Direção artística | Victor
Hugo Pontes
Dramaturgia | Victor Hugo
Pontes, com textos de Maria Gil e Fernando Giestas
Espaço cénico | Henrique
Ralheta
Interpretação | Leonor Keil
e Rafaela Santos
Criação | Amarelo Silvestre
Co-produção | Amarelo
Silvestre, Nome Próprio, TNDM II, Centro de Arte de Ovar, Câmara
Municipal de Nelas
Centro de Arte de Ovar
28 Out 2017 | sab | 22:00
Há uma mulher que parte. Uma
entre muitos que, desencantados, derrotados, exaustos, partiram já
em busca de mais futuro. E há uma outra que resiste, talvez
levada pelo sentimento romântico do apego à terra e acreditando
que talvez ainda valha a pena. Mas tão desanimada e exausta quanto a
outra. Elas são Leonor e Rafaela, o lugar Canas de Senhorim. Poderiam ser quaisquer outras pessoas, num qualquer outro lugar
deste “País em vias de extinção”.
Em redor das vivências e
memórias das duas protagonistas, constrói-se todo um universo
que recupera gentes e modos de vida, já desaparecidos ou em vias
de o ser. Canas de Senhorim será sempre as minas de urânio a 500
metros de profundidade, o pó e as chuvas de cinzas constantes, as
mulheres em casa e os homens na taberna, a beber - porque “quem
não bebe é maricas”. Canas será sempre o Carnaval, as
cameleiras e magnólias que atapetam as entradas das casas, a
gente da terra e a gente de fora, gente “achadiça”. E será
ainda e sempre a loja da D. Idalécia, dos incêndios que ceifam
vidas, da prostituta que lia Isabel Allende ou do velho que nunca
se esquecia de devolver o dinheiro emprestado.
“Canas 44” é possuidor dum
texto ríquíssimo naquilo que evoca, tem duas protagonistas
convictas da sua dupla identidade enquanto pessoas e atrizes e,
nessa medida, empenhadas e honestas, e tem um cenário
inteligentemente desenhado, cuja circularidade acentua a ideia de
que, por mais que se corra, nunca se sai do sítio (o mais que se
consegue é levantar poeira, que as máscaras oferecidas ao
público, à entrada para o espetáculo, para alguma coisa haverão
de servir). A verdade é que isto não chega para fazer um bom
espetáculo. Há uma falta de fluidez na forma como o texto se
desenvolve, tornando-o de difícil leitura, desconexo. Há um fio
condutor que ora o é, ora deixa de o ser, como que atacado por
uma “dislexia artística” que baralha e confunde o espectador.
E há ainda uma tentativa de aproximação à dança que, enquanto
linguagem, é um falhanço, tal a falta de segurança das atrizes
no domínio desta arte.
Admirador confesso da Amarelo Silvestre - “O que é que o pai não te contou da guerra?” ou o sublime “Museu da Existência” são duas referências ao nível do que de melhor se fez em teatro em Portugal nos tempos mais recentes -, é com mágoa que classifico "Canas 44" como uma peça menor. Resta, enfim, a honestidade da proposta, o que não será de somenos; mas que não chega para apagar um certo sabor amargo. [Foto: Nélson Garrido / publico.pt] |
TEATRO: “Quem tem Medo de
Virginia Woolf?”,
de Edward Albee
Direção de Diogo Infante
Interpretação de Diogo
Infante, Alexandra Lencastre, Lia Carvalho e José Pimentão
Cine-Teatro de Estarreja
30 set | sáb | 21:30
“Porquê este texto, outra
vez!?” Porque é extraordinário, insisto! E o que o torna
extraordinário para nós, atores, é o seu grau de exigência, a
sua complexidade e a oportunidade que um texto destes encerra de
arriscarmos, de nos superarmos.”
Diogo Infante
Desafio superado, apetece dizer,
após duas horas de excelente teatro com casa cheia em Estarreja.
Interpretações sólidas num drama que nos fala da própria
essência da dualidade humana e de todas as contradições que
dela partem. Teatro do bom!
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TEATRO: “O Homem da
Guitarra”,
de
Jon Fosse
por Teatro do Interior –
Associação Cultural e Artística
Manuel Wiborg | encenação
Manuel Wiborg e Adriano Sérgio
| interpretação
Teatro Carlos Alberto
09 jul | dom | 16:00
Em cima do mesmo palco, duas
peças decorrem em simultâneo. Embora individualizadas, parecem
complementar-se uma à outra. Ou, pelo menos, assim o quis o actor
e encenador Manuel Wiborg em “O Homem da Guitarra”, do
norueguês Jon Fosse. Cansado da monotonia dos dias, do vai e vem
das pessoas, das mesmas cantigas, da mesma vida, um dos homens
parece ter chegado a uma encruzilhada e propõe-se mudar de vida.
Do outro lado do palco, o outro homem, construtor de guitarras,
parece estimar a vida que tem, apesar da monotonia dos dias, do
vai e vem das pessoas, das mesmas cantigas, da mesma vida. Este
conta milhões; o outro, apenas tostões.
Faça-se aqui um parênteses para
referir que a compreensão da mensagem que contrapõe o bem
sucedido ao fracassado é tudo menos evidente ao longo da peça.
Necessário se torna uma explicação final, ainda em palco, onde
Adriano Sérgio, empresário (o não ator que contracena com
Wiborg), narra, sucintamente, o seu percurso de vida, o qual
culmina na criação do seu próprio negócio. Uma história de
sucesso, portanto. Posto isto, está tudo dito. Manuel Wiborg tem
toda a legitimidade para “ler” Fosse da forma que bem entende,
mas esta sua leitura (?) não passa dum artificio. Caso contrário,
não se veria obrigado a vir dar explicações à plateia.
De tédio em tédio, com breves
apontamentos ritmados pela previsibilidade (retirar as cordas à
guitarra é um mau sucedâneo da sua obrigatória destruição),
“O Homem da Guitarra” é um exercício de mau teatro. Em
palco, Wiborg não convence. É sua a responsabilidade de dar
chama a uma chama que se apaga, mas unhas para esgalhar aquela
guitarra é coisa que prova não ter. Com tão pouco para dizer, o
mais que consegue é criar no espectador o desejo de que tudo
acabe muito rapidamente. Tarefa impossível, que põe a nu a
relatividade do tempo. Há horas que parecem eternidades!
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TEATRO: “Inferno”,
de Dante Alighieri
por Teatro O Bando
FITEI 2017
Teatro Carlos Alberto
15 jun | qui | 21:00
Quis o Teatro O Bando trazer ao
FITEI a sua última produção, Inferno, baseado n' A Divina
Comédia, obra maior da literatura universal, escrita por Dante
Alighieri há sete séculos atrás. A Divina Comédia é, entre
outras coisas, um poema didático de dimensões enciclopédicas
que expõe a ordem físico-cosmológica, ética e
histórico-política do universo. Mas é também uma alegoria, um
grito de revolta do escritor, que passou os últimos 19 anos da
sua vida exilado, proibido de entrar na sua cidade e condenado à
morte.
Inferno é uma peça difícil de
classificar. Pode-se chamar-lhe teatro “contemporâneo” mas
esta é uma falsa questão, desde logo se recuarmos às origens do
grupo, há mais de quarenta anos, onde já se encontravam,
inteirinhas, estas mesmas marcas e que faziam com que as peças
vibrassem de força e novidade. Aliás, o facto de “Inferno”
surgir na linha daquilo a que O Bando nos habituou, sendo uma das
suas forças, é talvez a sua maior fraqueza. As obras encenadas
por João Brites vão-se reduzindo continuamente a um conjunto de
estereótipos e perderam definitivamente o brilho. O encenador já
não consegue puxar dos galões nos dias que correm e deixou de
nos surpreender.
Entenda-se que há um enorme
trabalho em torno deste “Inferno”. Reconheça-se o mérito de
quem se dispõe a passar ao teatro um dos textos mais difíceis da
literatura universal, admire-se a justeza do cenário, dos seus
patamares hierarquizantes, da sua configuração concêntrica, da
crueza dos materiais e, naturalmente, aplauda-se a qualidade das
representações, do trabalho em palco. O que não é pouco. Mas
não é bastante. Olhando para trás é difícil não encolher os
ombros. Mais um, diz-se. “Inferno” sem chama, este!
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TEATRO: “Filhos do Retorno”,
de Joana Craveiro
por Teatro do Vestido
FITEI 2017
Teatro Municipal do Porto –
Campo Alegre
10 jun | sab | 21:30
Índia, Cabo Verde, Moçambique,
Guiné e Angola. Cláudia, Lavínia, Marina, Rafael e Daniel.
Cinco ex-províncias ultramarinas para cinco personagens em palco,
cinco pessoas cujas vidas se encontram indelevelmente ligadas a
África. São filhos do retorno. Dos pais e de outros familiares
diretos, receberam como herança as imagens dum tempo bonançoso
de prosperidade e riqueza, sem que o luto de quem tudo foi
obrigado a deixar para trás estivesse resolvido (alguma vez
estará?). Num apurado exercício de reconstituição,
entregam-se, na voz e no gesto, a animar os muitos objetos
resgatados ao fundo dos baús, procurando ligá-los pelos finos e
imprecisos laços da memória. Desta forma, conduzem-se –
conduzem-nos (!) - numa jornada de busca e deriva, ao longo da
qual se levanta, insistentemente, a questão: Quando sabemos
apenas aquilo que nos contaram, o que sabemos, afinal?
É assim “Filhos do Retorno”,
peça escrita e encenada por Joana Craveiro e que o Teatro do
Vestido estreou nesta edição do FITEI. É o teatro documental a
impor de novo o seu traço, relembrando o quão traumática pode
ser a descoberta da verdade. Reconstituir os momentos de
felicidade que uma simples fotografia parece traduzir é, aqui,
ampliar o desconforto face à crua factualidade. Mencionar Lusaka,
Machel, Soares ou Wiriyamu é um convite a embarcar numa espiral
de medo, revolta, dor e morte.
Ao longo de mais de duas horas, a
peça bascula entre o encantamento e o horror, revelando feridas
abertas que nenhum sorriso pode esconder. Neste exercício de
pós-memória, Joana Craveiro olha a História de frente, sem
deixar nunca de nos recordar que quanto mais se desvenda, mais há
para desvendar. Ao espectador cabe aceitar, ou não, o convite a
embarcar nesta viagem. Fazê-lo é, certamente, experimentar (de
novo?) os sons, os sabores (!) e os sonhos de África. É conviver
com as suas paisagens ídílicas, a sua música quente, as suas
promessas de “terra que mana leite e mel”. É ondular ao som
do funaná, sentir o cheiro da terra vermelha numa gota de chuva,
saborear os temperos da cachupa. Mas é também estar disposto a
desenterrar o medo, a lidar com as próprias vivências, com as
próprias memórias. É questionar-se, questionando. É aceitar
que o breve excerto dum documentário, a letra duma música, o
detalhe duma fotografia ou o sorriso enigmático do ator poderão
conter, em si mesmos, um bilhete de ida para uma viagem ao
inferno.
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TEATRO: “Campo Minado”,
de Lola Arias [argentina |
reino unido]
FITEI 2017
Teatro Carlos Alberto
08 jun | qui | 21:00
Possessão colonial britânica no
extremo Sul do Atlântico, as Ilhas Malvinas vêm sendo alvo de
disputa de soberania entre o Reino Unido e a Argentina desde 1883.
As fortes motivações políticas ditadas pela contestação ao
regime da Ditadura Militar do General Galtieri levaram a que, em
02 de Abril de 1982, os argentinos invadissem as ilhas. Conhecido
como Guerra das Malvinas, o conflito armado estendeu-se até 14 de
junho desse ano, resultando na recuperação do arquipélago por
parte dos britânicos, embora com o trágico saldo de mais de 900
mortos, 649 dos quais soldados argentinos, 255 britânicos e 3
civis das ilhas. As consequências políticas deste desfecho
resultaram numa viragem do regime argentino rumo à democracia,
enquanto Margaret Thatcher reforçava a posição dos
Conservadores à frente do governo britânico. Hoje, 35 anos
volvidos sobre a Guerra das Malvinas, os britânicos continuam a
ser vistos pelos argentinos como uma potência invasora. As partes
em conflito mantêm-se irredutíveis. Uma solução para o
diferendo está longe de ser encontrada.
“Campo Minado” aborda o que
ficou da Guerra das Malvinas, nas memórias e nas vidas de seis
combatentes. Fortemente inscrita no género de Teatro Documental,
a obra retira a sua maior força do facto de estarmos perante seis
pessoas em palco que, em cenário real de guerra, partilharam o
“palco” das Malvinas. Lou Armour, Rubén Oteros, David
Jackson, Gabriel Sagastume, Sukrim Rai e Marcelo Vallejo são
veteranos de guerra, seis “não atores” que, em campos
opostos, recuperam experiências dolorosas, cicatrizes vivas dum
período marcante das suas vidas, aceitando partilhá-las,
expondo-as e expondo-se às mais variadas conjeturas. São
exercícios de catarse individual onde se evidencia a fragilidade
do ser humano face à dimensão trágica duma guerra e das suas
repercussões físicas, sociais e comportamentais naqueles que, de
forma direta ou indirecta, viveram o momento.
O aspecto mais interessante desta
obra tem a ver, inegavelmente, com a encenação de Lola Arias. O
foco da sua atenção é o “não ator” e as contradições a
que, nesta condição, se expõe em palco. Para a encenadora, o
desafio está em preservar, do lado de cá do teatro, a
genuinidade e a verdade das vivências. Mais do que reforçar o
aspeto documental e deslocar o “teatro de guerra” para o
“teatro teatro”, importa-lhe explorar os limites da
representação ou de "como representar não representando".
Não é a verdade histórica que está aqui em causa. Essa, no
limite, acaba por ser a verdade de cada um, tão diferente na
esfera social e política, mas tão próxima na sua dimensão
humana. Impedir que o real e o aparente se contaminem, dar à
palavra a força determinada pelas próprias circunstâncias e
fazer do teatro-verdade o paradigma deste “Campo Minado”,
acabam por ser o alvo da demanda deste grupo em busca da sua
própria identidade. No demais, a vida, como o teatro, carregam as
cicatrizes do passado. E dessas, ninguém se consegue libertar.
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TEATRO: “No Limite da Dor”,
de Ana Aranha e Carlos Ademar
por Lendias d'Encantar
FITEI 2017
Mosteiro S. Bento da Vitória
- Porto
07 jun | qua | 21:00
Começou por ser um programa da
rádio pública Antena 1, da autoria de Ana Aranha. Passou depois
a livro, numa parceria da jornalista com Carlos Ademar. Chegou
finalmente ao teatro, em Maio de 2014, pela companhia Lendias
d'Encantar, com dramaturgia e encenação do cubano Julio César
Ramirez. “No Limite da Dor” dá a conhecer os testemunhos
reais de dois homens e duas mulheres, presos políticos na longa
noite do estado Novo, propondo uma reflexão profunda sobre a
resistência, o medo, a humilhação, a dor e a dignidade humana.
O teatro documental chegou ao
FITEI 2017. Georgina, Luis, Conceição e Domingos são
personagens reais que, através da emoção e da técnica dos
atores, depositam nas mãos do espectador a experiência vivida
por dezenas de milhares de portugueses às mãos da PIDE. Sem
artificialismos, é a verdade da História que ali se derrama, nua
e crua, num cenário propositadamente nu e cru, ampliando o horror
resultante da memória partilhada.
Em palco, Ana Ademar e António
Revez são o corpo e a voz dos testemunhos vividos na primeira
pessoa. Tocantes de sobriedade e contenção, evocam o ser humano
naquilo que tem de mais resiliente quando confrontado com
experiências-limite, no particular momento em que a força cede e
a dúvida se instala. Mas evocam, sobretudo, a forma como se é
capaz de reparar os “estragos”, abafar a dor e reconciliar-se
consigo próprio, preservando sempre a memória. Para que o ovo da
serpente não ecluda jamais!
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TEATRO: “Solange – Uma
Conversa de Cabeleireiro”,
de Regina Guimarães
FITEI 2017
Cabelereiro Nunes Queirós -
Porto
07 jun | qua | 19:30
Quando, no final de mais um dia,
Solange fecha o Salão, é toda uma nova história que começa.
Divã de psicanalista, confessionário de igreja ou simplesmente
retrete, onde se descarregam imperfeições, incoerências,
retaliações, impertinências e frustrações do género humano,
a cadeira no centro do Salão volta a ser, simplesmente, uma
cadeira. Aí, Solange estende o corpo exausto, confere as
marcações e as contas do dia, fuma nervosamente um cigarro, fala
ao telemóvel ou olha em volta, as estantes em desalinho, revistas
antigas e mechas de cabelo cortado atapetando o chão, velhas
recordações penduradas nas paredes. E desabafa a sua vidinha de
cão, as pernas a encherem-se de varizes, sempre a levar com a
vida das outras, com os amigos das outras, com os maridos das
outras, com os amantes das outras.
Solange é Susana Madeira, atriz
nascida no Porto em 1980 e que, desde 2006, vem construindo uma
sólida carreira teatral. Na voz e no gesto, ela volta a dar em
palco tudo o que tem. Importa dizer que, no caso concreto da peça
a que se assistiu no âmbito do FITEI, este palco é, na
realidade, um verdadeiro Salão de Cabeleiro, no início da Rua de
Santa Catarina, na cidade do Porto. O efeito-verdade que se busca
com esta opção cénica tem, na interpretação de Susana
Madeira, o conveniente prolongamento. Solange é uma cabeleireira
do Porto e as idiossincrasias desta condição estão todinhas nas
suas expressões, no sotaque, numa certa brejeirice, até, que a
atriz cultiva e reforça. Mas é na expressão dos seus estados de
alma, na naturalidade com que passa da euforia à mais profunda
depressão, nessa espécie de bipolaridade que toma conta das suas
atitudes e juizos, que Susana Madeira melhor se exibe, num registo
eloquente e comovedor.
Retrato cruel duma sociedade que
vive das aparências, Solange – Uma Conversa de Cabeleireiro é,
no seu todo, um poema de enorme alcance e intensidade. Autora do
texto, Regina Guimarães imprime-lhe essa matriz, quer recitando
Luisa Neto Jorge, Cecília Meireles ou Adélia Prado, quer
mostrando-se na grande poetisa que é, declamando em nome pessoal
ou no do seu alter ego, Só Solange. Há poesia no ar, nos
retratos da avó Zeza e do Avó Diamantino, nas madeixas,
extensões, permanentes, rolos e bigodis, no som dos boleros que
passam na rádio, nos frascos de laca e no espanador, no morcão e
no "p'ra onde é que estás a olhar". Há poesia nas
lágrimas de Solange, no seu olhar conformado, no seu riso franco,
nas suas certezas e nas suas dúvidas. Há poesia no teatro. E há
teatro na poesia!
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TEATRO: “Pájaro”,
de Trinidad González [chile]
FITEI 2017
Teatro Municipal do Porto – Rivoli
02 jun | sex | 21:30
Uma noite de copos entre amigos é
subitamente interrompida pela chegada de um pássaro. Mas não um
pássaro qualquer, a começar pela sua figura, demasiado humana
face àquilo que é suposto ser um pássaro. Ainda assim um
pássaro. Um pássaro chamado... “pássaro”. A estupefação
inicial perante esta súbita presença cede rapidamente lugar à
dúvida. Enigmático e perturbador, o pássaro veio para abalar as
consciências dos três amigos, evidenciar a frivolidade em que
vivem e se autocomprazem, obrigá-los a refletir na sua própria
identidade e no lugar que cada um ocupa no mundo.
Metáfora dilacerante do nosso
quotidiano, escrita e encenada por Trinidad González e
interpretada pela própria e por Maria Fernanda Olivares, Nicolás
Pavez e Nicolás Zárate, “Pájaro” teve uma apresentação
fulgurante no Palco do Teatro Rivoli no segundo dia do FITEI 2017.
Mais do que o medo que o ser humano experimenta se confrontado com
a diferença, este é um texto que clama pela liberdade - a que
exalta os sentidos e alimenta revoluções - quando apenas está
em causa o direito a viver. Nesse sentido, a peça convida o
espectador a tomar partidos. Dum lado, aqueles que, de forma
provocatória e egoísta, apenas parecem afirmar-se quando pensam
ser capazes de sobrepor o seu ruído ao ruído dos outros; do
outro, aqueles que estão certos do lugar que ocupam e, em
silêncio, sabem escutar-se e ao mundo que os rodeia.
Mas a peça vai mais além. O
texto tem novas implicações e abre-se a outras leituras. Este
pássaro – esta liberdade (!) - está ferido. Ao coberto da
noite, oculta na própria sombra, mão assassina lançou uma
pedra, interrompendo o pássaro no seu voo. O sangue que lhe
empasta o cabelo e lhe escorre pela face, as lágrimas que brotam
de forma incontida, remetem para a universalidade do sofrimento e
da dor. Mas também para a relativização dos sentimentos,
impactantes num primeiro momento, para logo passarem para um
segundo plano, rapidamente afastados do coração, até serem
esquecidos ou, pior ainda, abafados por novo e mais cruel
acontecimento. Resta a liberdade que, mesmo ferida, sobreviverá!
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INTERVENÇÃO | PERFORMANCE:
“Steli”
por Stalker Teatro [Itália]
Imaginarius – Festival
Internacional de Teatro de Rua
Santa Maria da Feira
27 mai | sab | 16:30
Centenas de varas de madeira e
fita-cola. Foi com estes ingredientes que o Stalker Teatro se
apresentou na 17ª edição do Imaginarius para uma instalação
performativa que toma o nome final de STELI e na qual o trabalho e
o esforço de todos, com vista a um propósito comum, resultam
numa construção multi-colorida de grande impacto visual. A
partir dum conjunto inicial, levanta-se uma autêntica cidade
graças ao labor dos muitos “operários” angariados entre o
público, naquilo que é visto pelo coletivo italiano como “um
projeto educativo que envolve pais e filhos”.
Na sua ambiciosa dimensão e vida
efémera, esta cidade-que-se-levanta-na-rua questiona as
vivências, a ocupação e a arquitetura das cidades
pós-industriais. É todo um microcosmos que, fechado entre
horários e rotinas, vive de e para a cidade, ao mesmo tempo que
se impede de viver para si próprio. Os gestos são mecânicos e
exatos. A liberdade da criação é uma liberdade controlada
porque os próprios recursos são limitados. Se as cores vivas e
efusivas nos dão essa ilusão de fantasia, a paleta do arco-íris
obriga a desviar o olhar para as nuvens tempestuosas prestes a
desmoronarem-se sobre nós. No final, nada restará!
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INTERVENÇÃO | PERFORMANCE:
“Cegos”
por DESVIO COLETIVO [Brasil]
Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua
Santa Maria da Feira
27 mai | sáb | 15:00
Estou em crer que, dos 41 espetáculos que integraram a programação do Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua, que de 25 a 27 de maio tomou conta do Centro Histórico de Santa Maria da Feira, CEGOS, dos brasileiros “Desvio Coletivo”, foi, porventura, aquele que mais se aproximou do conceito desta 17ª edição do Festival, “a antítese entre a cegueira e a luz”. Neste espetáculo, homens e mulheres, em trajes sociais, cobertos de argila e de olhos vendados, caminham lentamente, interferindo de forma poética com o fluxo quotidiano da cidade.
À vista deste improvável grupo, torna-se inevitável a comparação com o magistral “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, tomados que somos pela angústia duma deambulação ao acaso e pelo sofrimento duma vida feita de trevas. A argila que cobre os corpos e que confere ao todo uma uniformidade perturbadora, lembra-nos que “somos pó e ao pó tornaremos”, independentemente da idade e do género de cada um, da sua cor ou da condição social. Na lenta e silenciosa marcha, os passos titubeantes e a pose hesitante revelam a fragilidade da condição humana de cada um, procurando apoiar-se no outro, tão ou mais frágil ainda.
Da novidade e do espanto, passa-se rapidamente à rejeição e à repulsa. Acompanhando a deriva destes CEGOS, apenas por breves instantes os conseguimos fixar agora, de tal forma representam um incómodo, uma ameaça. Deixou de haver margem para a empatia. Desapareceu a solidariedade. Deles, nada mais esperamos que o silêncio. Instala-se, de súbito, um desejo crescente para que desapareçam da nossa vista, das nossas vidas. Mais do que nunca, estamos certos que, na sua presença, não escaparemos à contaminação. E damo-nos conta, então, do quão contaminados estamos já por uma Sociedade que afirma tolerar a diferença, sem a aceitar ou sequer admitir!
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TEATRO: "Atalhos",
de Joana Craveiro
Colectivo FALSOS dEUSES
Salão dos Irmãos Unidos 28 Abr | Sex | 21:30
Noite de estreia de mais uma
produção do Colectivo FALSOS dEUSES, desta vez integrada no
regressado Projeto "PANOS - Palcos novos, Palavras novas",
da Culturgest. Aceitando pela primeira vez o desafio de integrar o
Projeto, os FALSOS dEUSES empenharam-se na produção da peça
"Atalhos", a qual constituiu a quarta produção do
Colectivo e teve estreia no dia 28 de abril.
Em palco, dez atores para cinco
personagens deram o melhor de si, proporcionando momentos de
excelente teatro a um público que esgotou a sala e não regateou
aplausos no final. A solução que desdobra cada personagem em
duas, a plasticidade dos elementos cénicos, um texto recheado de
momentos de enorme intensidade dramática, a energia posta em
palco pelos atores e a enorme sensibilidade duma promissora
encenadora, atenta ao detalhe e capaz de tirar o melhor de cada um
dos atores, transformam aqueles 60 minutos num momento único de
puro deleite, de puro teatro.
Uma palavra especial para a
encenação de Tanya Ruivo, ultrapassando da melhor forma o
desafio de transpor para o palco um texto tudo menos fácil, com
tanto de doce e contido, quanto de extrovertido, mesmo violento.
Artifícios cénicos de enorme criatividade, energia transbordante
e muita cumplicidade dentro e fora do palco foram ingredientes
duma noite especial no Salão dos Irmãos Unidos.
[Importa referir que o Coletivo
FALSOS dEUSES foi um dos seis grupos escolhidos por um comité de
seleção, para apresentarem o seu espetáculo no festival de
encerramento do Projecto PANOS na Culturgest, de 19 a 21 de maio
de 2017]
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TEATRO: “Elas”,
de Rafael Polónia Interpretação e criação | Susana Madeira e Tanya Ruivo
Produção | Conversa
Própria
Espaço Irmãos Unidos 03 Fev 2017 | sex | 21:30
"Se te fecham anos num
quarto, onde é que vives?"
O espaço é fechado,
concentracionário, resumido a quatro paredes nuas. O momento é o
de um conflito armado, algures, num dos muitos palcos de guerra
deste mundo, de hoje ou de ontem. Elas são duas mulheres (irmãs?)
presas numa casa, incapazes de apagar da memória o horror sempre
presente, aguardando na angústia um futuro incerto e ameaçador.
“Elas” são Tanya Ruivo e
Susana Madeira, as duas atrizes que criaram e corporizam este
“work in progress” do Coletivo Conversa Própria, sobre um
texto de Rafael Polónia. Um texto belíssimo, diga-se, pleno de
atualidade, revelando um dos lados mais negros dum conflito e o
seu impacto sobre quem nada fez ou para ele contribuiu.
Das interpretações ressalta a
sobriedade e contenção das duas atrizes nos momentos de reflexão
e de maior intimidade e cumplicidade, permitindo evidenciar a
violência interior e a raiva latentes quando passa a ser
impossível conter tanta tensão acumulada. De forças e fraquezas
se faz este exercício de sobrevivência aos dias todos iguais,
com Tanya Ruivo e Susana Madeira exímias na forma como urdem nas
suas personagens uma complexa teia de emoções contraditórias,
que cresce de intensidade à medida que o drama se agiganta no
interior de cada uma delas.
Aqui não há concessões. Os
olhares são punhos fechados e cada palavra é um murro. Acalmia
não é sinónimo de reconciliação. É apenas o ganhar fôlego
para um novo e mais violento embate. A força do texto e das
interpretações arrasta o espectador nesta voragem, impede-o de
ficar indiferente, obriga-o a investir o seu tempo e sua
consciência na análise das causas e consequências dum conflito
que é, hoje, de todos.
Teatro de intervenção, teatro verdade, teatro do bom, aquele que se viu esta noite no espaço dos Irmãos Unidos, em Ovar. |
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