Páginas

CINEMA



CINEMA: “O Meu Amigo Pete” / “Lean on Pete”
Realização | Andrew Haigh
Argumento |Andrew Haigh, Willy Vlautin
Fotografia | Magnus Nordenhof Jønck
Montagem |Jonathan Alberts
Interpretação | Charlie Plummer, Amy Seimetz, Travis Fimmel, Steve Buscemi, Ayanna Berkshire, Connor Brenes, Chloë Sevigny
Produção | Tristan Goligher
Reino Unido, França | 2017 | Drama | 121 Minutos | M/14
Cinema Dolce Espaço
07 Jul 2018 | sab | 18:30


Adaptação do romance homónimo, de Willy Vlautin, “Lean on Pete” conta a história de Charley (Charlie Plummer), um adolescente acabado de chegar a uma pequena cidade do Oregon, na companhia do pai. A descoberta dum hipódromo próximo de casa leva-o a conhecer Del Montgomery, proprietário de cavalos de corrida, e também Lean on Pete, um cavalo dócil mas em “fim de vida”, prestes a ser vendido para abate. Da cumplicidade entre o rapaz e o cavalo, à fuga de ambos para o estado vizinho do Wyoming, onde vive uma tia de Charley, irá um pequeno passo feito de dúvida e mágoa, desespero e solidão.

Questionando o paradigma familiar numa sociedade egoísta e onde tudo parece ser descartável, Andrew Haigh oferece-nos uma visão terna e delicada do percurso iniciático da adolescência em busca dum ponto de equilíbrio ou, se quisermos, do sentido da vida. Graças a um argumento envolvente e subtil, o realizador tem o grande mérito de obrigar o espectador a olhar de forma empática para a personagem principal, convidando-o a partilhar os seus possíveis erros na avaliação das situações e nas tomadas de iniciativa, a sua ingenuidade, mas também a força do seu carácter. Sem cair no melodrama ou no excesso, Haigh limita-se a expor os acontecimentos, deixando ao espectador esse lado da descoberta dos dissabores que Charley vai enfrentando.

Figura solitária antes mesmo de se ver abandonada à sua sorte, Charley  metamorfoseia-se à medida que vai interagindo com quem se cruza no seu caminho. Como se de um “road movie” se tratasse, é nesse percurso de fuga para a frente, ritmado pela ligação crescente a (Lean on) Pete, involuntário companheiro de fuga e improvável confidente, que se percebe o quão vazio é o mundo de Charley e o quão necessitado está de amor e de diálogo. Excelente drama sobre o crescimento forçado dum adolescente face a um conjunto de circunstâncias trágicas e inesperadas, “Lean on Pete” é um estudo sóbrio mas acutilante sobre a solidão, que não deixa ninguém indiferente.




CINEMA: “Godard, o Temível” / “Le Redoutable”
Realização | Michel Hazanavicius
Argumento | Michel Hazanavicius, Anne Wiazemsky
Fotografia | Guillaume Schiffman
Montagem | Anne-Sophie Bion, Michel Hazanavicius
Interpretação | Louis Garrel, Stacy Martin, Bérénice Bejo, Micha Lescot, Grégory Gadebois, Félix Kysyl, Arthur Orcier, Romain Goupil
Produção | Florence Gastaud, Michel Hazanavicius, Riad Sattouf
Itália, França | 2017 | Biografia, Comédia, Drama | 107 minutos | M/14
Cinema Dolce Espaço
29 Jun 2018 | sex | 16:00



Michel Hazanavicius está de regresso ao grande ecrã com “Godard, o Temível”, uma adaptação do livro de Anne Wiazemsky que desvenda a relação da actriz com Jean-Luc Godard ao longo de um ano tormentoso. A acção remete para 1967, em Paris, numa altura em que o “enfant-terrible” conhece Anne e com ela dá início às filmagens de “La Chinoise”. Aquilo que começou por ser um amor idílico foi-se tornando num suplício para a jovem actriz, convertida em joguete pelo realizador, agora que o radicalismo das suas ideias começava a fazer dele uma criatura inconstante, tumultuosa e, não poucas vezes, incoerente.

Causa uma certa estranheza ver a forma desprezível como Jean-Luc Godard é tratado no filme e é legítimo o espectador interrogar-se sobre a verosimilhança desta personagem quase maligna, nos antípodas daquilo que se imaginaria de alguém que nos legou “O Desprezo”, “O Acossado”, “Pedro o Louco”, “Eu Vos Saúdo Maria” ou “Paixão”, entre outros. Mas esta é apenas a verdade de Anne Wiazemsky e, em absoluto, trata-se da visão de um único ângulo, o que deve ser tido em conta com a devida cautela. Mas mesmo que a verdade se resuma a metade daquilo que é dado a ver, digamos que o filme é tudo menos abonatório para a figura do cineasta.

Inteligente, mordaz e muito divertido, “Godard, o Temível” oferece momentos de grande cinema, do papel primordial desempenhado pelos óculos do realizador (a fazer lembrar Woody Allen em “O Inimigo Público”, 1969), às sequências vibrantes das manifestações de Maio de 68, como ficaram conhecidas. Se a isso acrescentarmos a correcção das interpretações – Louis Garrel é particularmente verosímil no papel principal – e o verdadeiro tributo que Hazanavicius presta à arte de filmar de Jean-Luc Godard, podemos afirmar que esta é uma homenagem com o seu quê de incisivo a um dos pais da Nouvelle Vague, mas onde não passa despercebido um enorme respeito e carinho pelo seu trabalho.





CINEMA: “Colo”
Realização | Teresa Villaverde
Argumento | Teresa Villaverde
Fotografia |Acácio de Almeida
Montagem | Rodolphe Molla
Interpretação | João Pedro Vaz, Alice Albergaria Borges, Beatriz Batarda, Clara Jost, Ricardo Aibéo, Rita Blanco, Miguel Seabra
Produção | Cécile Vacheret, Teresa Villaverde
Portugal, França | 2017 | Drama | 136 minutos | M/16
Cinema Dolce Espaço, Ovar
22 Jun 2018 | sex | 16:00


Apresentado na Competição Oficial do 67º Festival de Cinema de Berlim, “Colo” centra a sua acção num Portugal assolado pela crise económica que atinge duramente a classe média. Por detrás dos postos de trabalho descontinuados, há indivíduos e famílias inteiras lançados na incerteza, os sonhos adiados, a vida em suspenso. É disso que fala o filme, ao encontro duma família que, apesar de todos os esforços, se afunda cada vez mais na crise. O pai, desempregado, passa o tempo numa deambulação sem sentido, à espera de ver surgir uma qualquer luz ao fundo do túnel. A mãe, exausta com os dois empregos que acumula, mostra-se incapaz de garantir o sustento do lar. E a filha, em crise de adolescência, centra as dúvidas em tudo e em nada.

Repousando o seu olhar na dinâmica familiar abalada – com os consequentes desequilíbrios físicos e psicológicos a tornarem-se latentes -, Teresa Villaverde projecta uma sociedade profundamente doente, atormentada pela crise financeira. À realizadora interessa perceber mais os efeitos e menos as causas desta crise. A narrativa é crua e segue o seu rumo sem contemplações, os murros no estômago do espectador a sucederem-se a cada volta do filme. Numa casa onde o remedeio passa a ser regra, há muito pouco de romântico num jantar à luz das velas.

Lidando com um assunto tão impactante e actual, Teresa Villaverde revela uma enorme honestidade e coerência ao longo das mais de duas horas de filme. O ambiente depressivo no qual se desenvolve a acção e a ausência de esperança num futuro melhor são estigmas da verdade de cada um, por mais “geringonças” que se perfilem no nosso caminho. Depositar tamanho fardo no colo do espectador é, acima de tudo, despertá-lo para uma realidade que é de todos. É pedir-lhe que olhe em volta e perceba o que estamos a fazer a nós próprios em nome da Europa e dos mercados. É dizer-lhe que é tempo de erguer a voz e clamar por mais direitos e mais futuro. Em nome da liberdade!





CINEMA: “A Eterna Desculpa” / “Nagai iiwake”
Realização | Miwa Nishikawa
Argumento | Miwa Nishikawa
Fotografia |Yutaka Yamazaki
Montagem | Ryûji Miyajima
Interpretação | Masahiro Motoki, Pistol Takehara, Eri Fukatsu, Kenshin Fujita, Tamaki Shiratori, Sôsuke Ikematsu, Haru Kuroki, Keiko Horiuchi, Maho Yamada
Produção | Takashi Iwamura, Kazumi Kawashiro, Kiyoto Matsui, Shûichi Nagasawa, Yasuhito Nakae, Asako Nishikawa, Tetsuo Ohta, Akihiko Yose
Japão | 2016 | Drama | 124 minutos | M/12
Cinema Dolce Espaço, Ovar
15 Jun 2018 | sex | 16:00


A aclamada escritora e realizadora Miwa Nishikawa regressa ao grande ecrã com “A Eterna Desculpa”, um filme baseado no seu romance homónimo e no qual Sachio Kinugasa, um escritor arrogante que acaba de perder a esposa num acidente de autocarro, tem de fingir a dor que todos esperam dele. A verdade é que há muito que o amor no seu casamento tinha terminado e o “luto” é como que um jogo devidamente orquestrado para manter as aparências. Tudo começa a mudar no dia em que conhece Yoichi Omiya, camionista, cuja esposa morreu no mesmo acidente, deixando-o a braços com a educação dos seus filhos. É, pois, chegada a hora de fazer opções verdadeiramente difíceis.

Calmo e subtil, “A Eterna Desculpa” evita da melhor forma o sentimentalismo gratuito. Embora lide com matérias tão delicadas como a dor, o luto ou as sombras do passado, o filme não é uma simples jornada redentora, antes guarda o devido distanciamento na forma como aborda a complexidade e variedade das relações humanas através duma trama surpreendentemente dura. Focando-se nas diferenças entre Sachio e Yoichi e no vínculo com as crianças, o filme estabelece uma dinâmica profundamente envolvente que esbate a previsível dicotomia entre os dois homens.

Mas é em Sachio que as atenções se irão centrar por inteiro, apresentando-o logo de início como um homem repulsivo, com um enorme ego e uma total ausência de respeito pelo outro, acabando por emergir como uma figura agradável e envolvente. No papel principal vemos Masahiro Motoki, actor que tinha já surpreendido com a extraordinária interpretação dum aspirante a violoncelista que acaba como agente funerário em “A Partida”, obra que, em 2009, conquistou o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira. Ele volta a ter aqui uma prestação exemplar, absolutamente crível e comovente, sem jamais dar a ideia do “canalha” que apreende as habituais lições de vida. Explorando os limites da dor e do seu impacto, “A Eterna Desculpa” é um momento de cinema de enorme qualidade e a confirmação do talento de Miwa Nishikawa, tanto atrás das câmaras quanto na delicada arte de escrever.




CINEMA: “Uma Mulher Doce” / “Krotkaya”
Realização | Sergei Loznitsa
Argumento | Sergei Loznitsa
Fotografia | Oleg Mutu
Montagem | Danielius Kokanauskis
Interpretação | Valeriu Andriutã, Liya Akhedzhakova, Vasilina Makovtseva, Boris Kamorzin, Sergey Kolesov, Rosa Khayrullina
Produção |Marianne Slot
França, Alemanha, Lituânia, Holanda | 2017 | Drama, Mistério | 143 minutos | M/16
Cinema Dolce Espaço, Ovar
08 Jun 2018 | sex | 16:00





Uma mulher desloca-se aos Correios a fim de levantar uma encomenda, mas rapidamente percebe que esta é a mesma enviada ao marido que se encontra preso e que acaba de ser devolvida sem qualquer explicação. Inconformada perante o silêncio instalado, faz-se ao caminho decidida a entregar a encomenda por mão própria. Começa, assim, uma verdadeira descida aos infernos, através de uma Rússia cujo carácter caricatural e excessivo contrasta com uma crescente dinâmica de humilhação e violência.

Misto de farsa e pesadelo, “Uma Mulher Doce” leva-nos do realismo mais radical ao barroco absoluto, num movimento desprovido de lógica aparente e ao longo do qual encontramos traços de Fellini, Tarkovsky ou Bela Tarr. O tema é amargo e absurdo. À medida que a personagem principal vai sendo dominada por uma realidade cujo funcionamento procura entender, o filme transforma-se num teste ao espectador, mergulhando-o no sofrimento físico e mental ao qual gostaria de escapar. O calvário chegará ao fim com a passagem dos créditos finais, mas fica a certeza de que se irá prolongar para a protagonista, personificação daquilo que constitui o pesadelo de muitos.

Sergei Loznitsa mostra-se brilhante na forma como reforça a determinação desta mulher que procura compreender a lógica de um sistema que se complexifica inexoravelmente diante dos seus olhos – e dos nossos (!) -, evoluindo para a extravagância mais selvagem. Um absurdo crescente e permanente ao qual os que a rodeiam parecem alheios, salvo a esta "mulher doce", testemunha e, fatalmente, vítima de uma farsa infame e aberrante. A galeria de personagens, tal como as situações – às quais a protagonista não procura escapar -, deixam-nos ainda mais perplexos perante o estoicismo desta mulher que, caminhando para a sua perdição de forma impassível, sem um esgar ou um sorriso, se revela paradoxalmente “doce”. Metáfora do ser humano preso no labirinto duma sociedade doente, “Uma Mulher Doce” alerta para a cegueira face à realidade que sustenta os novos tempos, caricaturando-a de forma brutal. Um filme duro, bem contrastante com a doçura que seria de inferir do título.





CINEMA: “Maria by Callas”,
Realização | Tom Volf
Montagem | Janice Jones
Interpretação | Maria Callas, Vittorio de Sica, Aristotle Onassis, Pier Paolo Pasolini, Omar Sharif, Luchino Visconti, Fanny Ardant (voz)
Produção | Thierry Bizot, Emmanuel Chain, Gaël Leiblang, Emma Lepers, Tom Volf
França | 2017 | Documentário | M/6 | 113 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
12 Mai 2018 | sab | 18:30


“Há duas pessoas em mim, a Maria e a Callas…”. Artista em busca do absoluto, transformada desde muito cedo em ícone à escala planetária, mulher apaixonada e que enfrentou um destino completamente invulgar, Maria Callas mostra-se na primeira pessoa, 40 anos após a sua morte, dando conta duma história de vida verdadeiramente única. Tal como expresso no título, o documentário baseia-se numa Callas a revelar a Maria que nela existe, a figura para lá do estrelato e da fama, pondo a nu as ambiguidades duma personalidade tão apaixonada quanto vulnerável.

Construído a partir de filmes pessoais em Super 8, gravações ao vivo privadas, cartas íntimas e raras imagens de arquivo a cores, “Maria by Callas” é o resultado dum trabalho de pesquisa meticuloso e duma montagem particularmente inteligente. Estamos aqui perante um documentário que encerra um momento de intimidade com a lenda e com a emoção da sua voz única, naquilo que constitui uma verdadeira imersão no universo de memórias duma figura, à época, endeusada, porque    completamente inacessível. Para muitos, este é também o momento de conhecer uma cantora de ópera ímpar e cuja notoriedade permanece intocável quatro décadas após o seu desaparecimento.

Aquilo que faz de “Maria by Callas” um documentário diferente é que não se constrói sobre uma compilação de imagens de arquivo comentadas por vários especialistas e outras testemunhas, assentando antes na proposta ousada de que a única voz audível seja a da própria Maria Callas. Além dos inevitáveis trechos de concertos (que beneficiam de uma digitalização que lhes confere uma notável qualidade audio), a edição de gravações permite reunir um painel de testemunhos na primeira pessoa totalmente inéditos. Reforçando a narrativa evocativa da personagem, Tom Volf inclui no documentário excertos da correspondência pessoal da Callas, à qual Fanny Ardant empresta a voz. A natureza íntima do conteúdo dessas passagens epistolares faz com que os sentimentos da cantora sejam revelados na justa medida da sua gloriosa carreira, e tudo isto com uma enorme sinceridade à qual ninguém consegue ficar indiferente.

Com um respeito quase religioso pela Diva, o documentário tece o que é mais uma conversa privada entre a Callas e o público (suprema ironia!) do que uma lição trivial de História, no sentido didáctico do termo. Um tal mergulho no mais íntimo da cantora acaba por constituir uma experiência de cinema que não se destina a ser endereçada apenas aos seus fãs. Os contornos duma glória merecida mas agitada, as interrogações face a um público intransigente e, sobretudo, o relacionamento com os homens – e um em particular!... -, tudo está feito para que o espectador conheça melhor esta mulher, sem jamais cair na armadilha do sensacionalismo fácil ou do voyeurismo indecoroso. Ceda-se ou não ao charme e talento magnético de Maria Callas, importa reconhecer a este projecto o mérito de conseguir um delicado equilíbrio entre pudor e intimidade, revelando com exemplar justeza aquela que foi a maior estrela internacional dos anos 50 e 60.




CINEMA: “Soldado Milhões”,
Realização | Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa
Argumento | Jorge Paixão da Costa e Mário Botequilha
Fotografia | José António Loureiro
Montagem | João Braz
Interpretação | João Arrais, Miguel Borges, Tiago Teotónio Pereira, Ivo Canelas, Isac Graça, Raimundo Cosme, Carminho Coelho, Graciano Dias, Nuno Pardal, Dinarte Branco, Lúcia Moniz, António Pedro Cerdeira
Produção | Pandora da Cunha Telles e Pablo Iraola
Portugal | 2018 | Guerra | M/12 | 85 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
04 Mai 2018 | sex | 16:00



Envolvendo a 2ª Divisão do Corpo Expedicionário Português, a Batalha de La Lys foi um dos episódios mais negativos da participação portuguesa na I Guerra Mundial. Na madrugada de 9 de Abril de 1918, oito divisões alemãs, com cerca de 100 mil homens e mais de mil peças de artilharia, avançaram sobre as forças portuguesas que, apesar de dizimadas – o balanço refere 1341 mortos, 4626 feridos, 1932 desaparecidos e 7440 prisioneiros -, resistiram tempo suficiente para permitir aos aliados suster a ofensiva e recomporem-se. Será precisamente no seio desta dramática história que se destacará um herói acidental, o transmontano Aníbal Augusto Milhais, celebrado pela sua bravura e ficando conhecido como o “Soldado Milhões”.

No ano em que se assinala o centenário do fim da I Guerra Mundial, a história do Soldado Milhões é mostrada em filme. Construída em tempos distintos, buscando uma complementaridade entre os momentos em guerra e fora dela, a história é desenhada de forma séria, tornando verosímil a personagem do Soldado Milhões, especialmente quando o conflito é evocado. As sequências de guerra são duma enorme sobriedade e dignidade, estando em causa menos os recursos limitados da produção e mais a opção estética de remeter o conflito para o íntimo dos seus protagonistas. Não há grandes planos sobre o campo de batalha, divisões de blindados a avançarem em linha e a esmagarem tudo à sua passagem, balas tracejantes a riscarem a noite, sangue a jorrar em bica ou tripas de fora; mas está lá – e sente-se – a raiva, a ansiedade, a loucura e o medo que se esconde em cada linha de trincheira. E está lá, forte como em nenhum outro lugar, o espírito de sobrevivência, a saudade, a amizade e a camaradagem.

“Soldado Milhões” é, por tudo quanto ficou dito, um belo momento de cinema. Mas tem debilidades. A abordagem à história de João Ferreira de Almeida, o “último fuzilado português”, é um erro já que não acrescenta nada ao filme, antes funciona como elemento de dispersão. E depois, factualmente, sabemos que os momentos terríveis vividos pelo Corpo Expedicionário Português tiveram muito a ver com o facto das tropas se encontrarem mal preparadas e insuficientemente equipadas para enfrentar um inimigo poderoso nos campos gelados da Flandres, nesse Inverno e início de Primavera de 1918. Ora, aquilo que nos é dado a ver é precisamente o contrário do que seria suposto, decorrendo a acção num clima estival e em paisagens mais compatíveis com o sul da Europa, quase conseguindo ouvir-se o canto das cigarras. E se esta claríssima falha da produção belisca o filme de forma indelével, temos a excelente interpretação de João Arrais a servir-lhe de contraponto e a justificar, também ele, o nome de “Milhões”. “Actor Milhões”!




CINEMA: “Como Nossos Pais”
Realização | Laís Bodanzky
Argumento | Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi
Fotografia | Pedro J. Márquez
Montagem | Rodrigo Menecucci
Interpretação | Maria Ribeiro, Clarisse Abujamra, Antonia Baudouin, Herson Capri, Cazé, Gabrielle Lopez, Jorge Mautner, Gilda Nomacce, Annalara Prates, Felipe Rocha, Sophia Valverde, Paulo Vilhena
Produção | Caio Gullane, Fabiano Gullane, Debora Ivanov, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi

Brasil | 2017 | Drama | 102 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
28 Abr 2018 | sab | 21:30


Ao vermos “Como Nosso Pais”, é fácil perceber que “Sonata de Outono” ou “Intimidade” nos assaltam à memória, sobretudo porque a temática subjacente é, em grande medida, semelhante. É certo que o filme da brasileira Laís Bodanzky não tem a mesma “passividade agressiva” dos dois clássicos referidos, tão pouco há nela a violência psicológica e a intensidade dos ajustes de contas dos filmes de Bergman e Allen, mas não podemos deixar de sentir aqui a honestidade e sinceridade de quem apenas quer falar da verdade e da mentira na relação entre pais e filhos e na forma como isso se reflecte no dia a dia de todos e de cada um.

O filme conta a história de Rosa, uma mulher de súbito abalada por uma revelação brutal, o que faz bascular ainda mais os alicerces duma vida marcada pelo sonho de querer ser uma coisa mas ter de ser outra. Com um casamento à beira da ruptura, duas filhas a entrar na adolescência, um pai que é uma verdadeira fonte de problemas e uma mãe cuja figura castradora a mantém refém de si mesma, a protagonista deste drama intenso acaba por fazer a gestão possível do quotidiano, agarrando-se às poucas certezas que ainda lhe restam e ao sonho de vir a ser dramaturga. Até que chega o momento de repensar a sua vida e dizer “basta”!

Talvez por uma questão de opressão de género, as mulheres nunca falaram muito sobre elas e a forma como se relacionam. Filme feminino, mais do que feminista, “Como Nossos Pais” quebra com o tabu e isso deve-se, em grande medida, ao facto de ser Laís Bodanzky, uma mulher, a figura por detrás da camera e co-argumentista do filme, ao lado de Luiz Bolognesi. O filme reforça o talento da realizadora como uma grande contadora de histórias naturalistas e que mais não pretendem do que mostrar a vida tal como ela é. É impossível o espectador não se rever nos medos, inseguranças e passos em falso de Rosa, magistralmente interpretada por Maria Ribeiro. O trabalho de escrita de Bodanzky e Bolognesi é refinado, sensível e convoca a reflexão. É muito fácil acreditar nas verdades daquelas personagens; difícil é acreditarmos nas nossas próprias verdades, quando confrontadas com as verdades dos outros. Nesse sentido, prepare-se o espectador para um bom par de murros no estômago.



CINEMA: “Na Síria” / “Insyriated”
Realização | Philippe Van Leeuw
Argumento | Philippe Van Leeuw
Fotografia | Virginie Surdej
Montagem | Gladys Joujou
Interpretação | Hiam Abbass, Diamand Bou Abboud, Juliette Navis, Mohsen Abbas, Moustapha Al Kar, Alissar Kaghadou, Ninar Halabi, Jihad Sleik, Elias Khatter
Produção | Guillaume Malandrin, Serge Zeitoun
França, Bélgica, Líbano | 2017 | Drama, Guerra | 85 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
20 Abr 2018 | sex | 16:00


A primeira reflexão sobre o filme recai no título original, “Insyriated”, um neologismo da mesma família de “encurralado”, “enjaulado”, “encarcerado”, “sitiado”. “Insiriado” alberga uma complexa conotação de reclusão, donde não é possível fugir, ao mesmo tempo que remete para um lugar preciso, a Síria, cujo povo é vítima duma asfixiante opressão, mostrando-se incapaz de escapar à trágica situação que o seu país vive desde 2011. Com este recurso retórico aparentemente simples, o realizador contextualiza de forma brilhante o argumento de “Na Síria”, todo ele filmado no interior dum apartamento no qual duas famílias, únicos habitantes desse prédio bombardeado, se encontram encurraladas sem poder sair, quer por causa das bombas que não cessam de cair em redor, quer pelos franco-atiradores que disparam sobre tudo o que mexe.


É neste ambiente fechado e de grande tensão que o argumentista e realizador belga Philippe Van Leeuw desenvolve a acção, convidando o espectador a perceber de que forma um punhado de pessoas lida com a escassez de recursos – sobretudo de água – e com a ameaça real duma guerra violenta do lado de lá das suas próprias paredes. Agarrando-se à pele das personagens, Van Leeuw recusa-se a fazer política e a identificar quem agride quem. Uma opção que reforça a atmosfera ameaçadora que pesa sobre aquelas pessoas, que desconhecem de que lado poderá vir o perigo, se do regime em vigor, se dos seus oposicionistas ou, ainda, se de gente sem escrúpulos que, no meio da confusão e do caos instalado, age de forma ignominiosa, tirando partido da vulnerabilidade das pessoas e retirando-lhes o pouco que ainda lhes resta. E as perguntas acabam por se impor, com dilacerante naturalidade: “Como é que o ser humano é capaz deste género de coisas?” Ou, mais arrepiante ainda: “E se isto fosse connosco, aqui, em Portugal?”



Transformado em prisão – que o ritual da abertura e fecho da porta acentua de forma pungente –, o apartamento é também um túmulo em potência e, nessa medida, um referencial daquilo que é a própria Síria. Desta forma, o realizador denuncia a situação do povo sírio feito refém no seu próprio país e convoca a reflexão sobre o sobressalto vital que leva os sírios a tomar o caminho da Europa, empreendendo a fuga apesar dos riscos que a situação acarreta, riscos esses, afinal, em nada diferentes dos que correm no momento em que decidem ficar. Verdadeira lição de coragem, este drama é uma chamada de atenção particularmente oportuna para o horror dum conflito que parece não ter fim à vista, obrigando todos e cada um de nós a considerarmos de forma mais próxima, fraterna e solidária os exilados que fogem dessa guerra e que terminam a sua dolorosa jornada nos campos de refugiados da Grécia, junto às cercas de arame farpado da Hungria, numa estação de Metro da Alemanha, nas nossas próprias ruas... Ou nesse cemitério a céu aberto que é o Mediterrâneo!




CINEMA: “O Capitão” / “Der Hauptmann”
Realização | Robert Schwentke
Argumento | Robert Schwentke
Fotografia | Florian Ballhaus
Montagem | Michal Czarnecki
Interpretação | Max Hubacher, Milan Peschel, Frederick Lau, Bernd Hölscher, Waldemar Kobus, Alexander Fehling, Samuel Finzi
Produção | Frieder Schlaich e Irene von Alberti
França, Alemanha, Polónia, Portugal | 2017 | Guerra, Drama, Histórico | 118 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
23 Mar 2018 | sex | 21:30


A duas semanas do final da Segunda Guerra Mundial, o exército alemão encontra-se resumido a um grupo de homens desbaratado, desmoralizado, esfomeado, perdido dos seus ideais, sem liderança e que tenta sobreviver a todo o custo. É neste cenário caótico, de verdadeiro “salve-se quem puder”, que o jovem cabo Willi Herold, desertor em fuga, encontra uma farda de capitão. Sem pensar, veste o uniforme e apresenta-se como oficial, reunindo de imediato à sua volta um grupo de soldados prontos a segui-lo. Com receio de ser desmascarado, Herold assume gradualmente o papel de capitão sem escrúpulos, acabando por sucumbir à intoxicação do poder.

Rodado praticamente todo ele a preto e branco, com uma soberba fotografia de Florian Ballhaus (filho de Michael Ballhaus), “O Capitão” é uma fortíssima metáfora do poder, do fascínio que exerce e da forma como toma conta do ser humano. Adaptado de um livro baseado em documentos que provam diversas barbaridades cometidas por alemães contra alemães, nomeadamente os desertores, o filme evidencia o desdém sobre a condição humana, ou, se quisermos, a superioridade mesmo para além da raça. É um filme que confronta o espectador com a amoralidade dos actos quando assentes no embuste e na fraude, caucionados, em grande medida, pela ausência de referências.

Nesta abordagem dum mais que sombrio passado da Alemanha e dum momento particularmente negro da sua história, Robert Schwentke disseca, de forma brutal, as questões do poder, da autoridade e da obediência. Com a violência e a crueldade a subirem de tom à medida que o filme avança, é impossível ao espectador não sentir, de forma brutal, o estertor do regime nazi. E, no entanto, o alcance do filme prolonga-se muito para lá do 7 de Maio de 1945, como as últimas imagens, já com os créditos finais a passarem, evocam. Levando a farsa às últimas consequências, Schwentke convida o “capitão” e o seu grupo a atravessarem um caminho de sete décadas para prosseguirem com a sua prepotência e com os seus abusos nos dias de hoje, chocando uma sociedade incapaz de reagir adequadamente às ameaças que lhe são feitas, alheada, amorfa, acrítica. Nesta medida, “O Capitão” vem-nos dizer que os ciclos da história provam que os terríveis acontecimentos de ontem são a realidade do amanhã. Os discursos populistas da direita xenófoba, cuja ascensão nas democracias da Velha Europa não pode deixar de ser vista como um sinal de alarme, aí estão a prová-lo.




CINEMA: “Ramiro”
Realização | Manuel Mozos
Argumento | Telmo Churro e Mariana Ricardo
Fotografia | João Ribeiro
Montagem | Pedro Filipe Marques
Interpretação | António Mortágua, Madalena Almeida, Fernanda Neves, Vítor Correia, Sofia Marques, Américo Silva, Ricardo Aibéo, Cristina Carvalhal, Sara Carinhas
Produção | Sandro Aguilar e Luis Urbano
Portugal | 2017 | Drama | 101 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
02 Mar 2018 | sex | 16:00


Ramiro João - o Ramiro do título deste filme de Manuel Mozos - é um chato. Dono duma livraria alfarrabista e poeta em perpétuo bloqueio criativo, vagueia entre a taberna e a loja, tendo no cão, nalguns amigos e em duas vizinhas os únicos interlocutores. Cordato com os estranhos, é quase intratável com aqueles que lhe são próximos, gerando anticorpos e mostrando-se relutante a qualquer demonstração de afecto. É um cínico, tem inveja dos escritores bem sucedidos e é distraído. É sobretudo um tímido, incapaz de se aproximar dos outros. Mas preocupa-se com eles e sabe estar junto das pessoas quando elas realmente precisam. E depois há a sua poesia, que quando sai cá para fora é duma beleza incomum, fazendo vir ao de cima essa luta interior entre o ser e o parecer.

Acrescente-se que é num microcosmos de bairro que o filme se desenvolve e que, para “apimentar” a coisa, Manuel Mozos convoca alguns imponderáveis dignos de telenovela, mas que esbarram nesta figura entre o frustrado e o conformado que é Ramiro, por quem é difícil nutrir alguma simpatia. Há, contudo, algo no filme que nos faz aproximar da personagem, que nos impele a compreendê-la e a ceitá-la. Não saberemos nada do seu passado, mas a forma como ele é convocado torna o filme apelativo. Há, ainda, as evidentes marcas da crise dum País sob o jugo da troika e apetece dizer que o País deste file é o País real. Comezinho, limitado e, sobretudo, triste. Assim mesmo, o país real.

Não se dará o caso de embandeirar em arco com “Ramiro”, embora estejamos perante um filme interessante, pelo que desperta no espectador. Sem grandes artifícios, baseando a sua estética no “cinema do real”, o filme de Manuel Mozos apanha um pedaço de vida e procura mostrá-lo tal qual é. Podia até ser um documentário se a sua mensagem fosse mais dirigida – a solidão duma idosa, a ousadia de ser mãe-solteira, o drama dum preso que está morto para alguns – e não uma história ficcionada que fala dos pequenos-nadas de que a vida é feita. No final fica o essencial, ou seja, fica a verdade de que, em cada um de nós, há um pouco deste Ramiro.




FILME-CONCERTO: “Fantômas”
Realização | Louis Feuillade
Argumento | Marcel Allain, Pierre Souvestre e Louis Feuillade
Fotografia e Montagem | Georges Guérin
Interpretação | René Navarre, Edmund Breon, Georges Melchior, Renée Carl, Yvette Andréyor, Jane Faber
Produção | Romeu Bosetti
Musica (interpretada ao vivo) | Amiina
França | 1913 | Crime, Drama | 61 minutos
Auditório de Espinho – Academia
16 Fev 2018 | sex | 21:30


Cinematograficamente falando, o ano de 1913 ficou marcado pelo arranque da série “Fantômas”, de Louis Feuillade, um épico de cinco horas e meia distribuído por cinco episódios, dos quais nos foi dado a ver no Auditório de Espinho o segundo, “Juve contre Fantômas”, em cópia restaurada. Personagem francês fictício da literatura, criado pelos autores Marcel Allain e Pierre Souvestre,“Fantômas” surgiu em 1911 e deu azo a 32 livros escritos em colaboração pelos dois autores. Nesta adaptação ao cinema, dois anos mais tarde, Feuillade mostra-se contagiado pela febre narrativa dos criadores da personagem, impondo às sequências um ritmo vertiginoso e evidenciando uma linguagem cinematográfica altamente evoluída numa altura em que o cinema dava ainda os primeiros passos.

O filme começa com um grande plano de Fantômas, apresentando-o, por meio de sobreposições, como um mestre do disfarce. Mas mostra também, pelo mesmo método, o Inspector Juve jogando com as mesmas armas e recorrendo ao disfarce para lograr os seus intentos de capturar o sanguinário Fantômas. A descoberta dum cadáver atrozmente assassinado faz disparar a investigação, com perseguições alucinantes pelos boulevards de Paris, um trepidante assalto ao combóio, a tragédia do Simplon Express e, já na parte final, o cerco à mansão de Lady Beltham e uma terrível explosão que vitima (ou talvez não) o Inspector e o seu ajudante e jornalista, Jérôme Fandor, ante o gesto triunfal do criminoso.

Mais do que a um drama policial de contornos surrealistas (as cenas da cobra são deliciosas), em “Juve Contra Fantômas” é ao apaixonante nascimento da linguagem cinematográfica, tal como a conhecemos hoje em dia, que nos é dado assistir. O experimentalismo narrativo, a forma de cortar com a linguagem convencional do teatro, é, no filme, uma quase obsessão do realizador. Os bairros de Paris, mostrados de forma absolutamente naturalista, são atravessados por personagens que se perseguem sob os mais variados disfarces, por mulheres de má vida, por meliantes e criminosos. É um vendaval de génio e de emoção que nos passa diante dos olhos e que faz deste filme um verdadeiro clássico do tempo do cinema mudo e uma obra de visualização obrigatória.

Resta falar da música, interpretada ao vivo, de forma magistral, pela banda islandesa Amiina (Hildur Ársælsdóttir, Edda Rún Ólafsdóttir, Maria Huld Markan Sigfúsdóttir e Sólrún Sumarliðadóttir). Melancólicos e etéreos, os ritmos encadeiam-se para alcançar o efeito desejado em melodias que convocam o medo e o suspense. Podemos falar duma banda sonora carregada de contrastes, da escuridão total e do terror às harmonias celestiais. Composta de forma quase introspectiva, inteligente e com uma estrutura delicada, ela serve de contraponto perfeito às peripécias que se vão sucedendo no ecrã, combinando de forma imaginativa os sons do violino, violoncelo, percussão, metalofone, harpa de mesa, ukelele e um conjunto de efeitos electrónicos verdadeiramente alucinantes. Trepidantes, tal como o filme. Louis Feuillade teria ficado orgulhoso do trabalho deste quarteto de jovens talentosos e geniais!




CINEMA: “Olhares Lugares” (“Visages villages”)
Realização | Agnès Varda e JR
Argumento | Agnès Varda e JR
Fotografia | Roberto De Angelis, Claire Duguet, Julia Fabry, Nicolas Guicheteau, Roman Le Bonniec, Raphaël Minnesota, Valentin Vignet
Montagem | Maxime Pozzi-Garcia, Agnès Varda
Interpretação | JR, Agnès Varda, Jean-Paul Beaujon, Jeannine Carpentier, Marie Douvet, Nathalie Schleehauf, Daniel Vos
Produção | Rosalie Varda
França | 2017 | Documentário | 90 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
13 fev 2018 | dom | 16:00


Não sabemos de que forma se cruzaram os seus passos. Sabemos, isso sim, que Agnès Varda, a realizadora, e JR, o fotógrafo e muralista, se conheceram em 2015 e decidiram, quase de imediato, abraçar em conjunto um projeto que fosse ao encontro dos objetivos comuns: a paixão pela imagem e a possibilidade de, através dela, questionar o mundo. Esta união de esforços leva-os, em “Olhares Lugares”, ao encontro duma França rural, num processo que resulta, igualmente, numa tão improvável quanto bela amizade. Os dois provarão que as diferenças não são obstáculo quando está em causa a defesa dos valores éticos e ideológicos numa sociedade cada vez mais voltada sobre si mesma.

Olhares Lugares” é Agnès Varda no seu melhor. Fiel aos princípios da Nouvelle Vague, que ajudou a criar, a realizadora mostra-se exímia em estabelecer a justaposição entre ficção e realismo documental. Fazê-lo em parceria com JR é, desde logo, o reconhecimento por outras expressões artísticas e, em particular, pela fotografia. Mas é também a demonstração de que a comunhão entre o velho e o novo, o moderno e o “rétro”, não apenas é possível como é idónea. Varda e JR trazem às aldeias uma arte que, até então, tinha primado pela ausência, e não apenas com o simples objectivo de a mostrar, mas com o intuito de a tornar peça de museus vivos, de lembrar que a arte não é um simples capricho, antes contribui para o progresso social do indivíduo e para um melhor conhecimento do mundo.

Apontado como o grande candidadto ao Óscar para o Melhor Documentário em 2018, “Olhares Lugares” é uma peça a quatro mãos com tanto de original como de belo, tanto de terno como de intenso, uma pequena pérola que nos aquece o coração e nos faz sorrir. Aqui, a simplicidade nunca é ligeireza, a ternura não se confunde com a complacência. A auto-caravana que “vomita” retratos gigantes é uma máquina de fazer magia que devolve histórias e memórias, as afixa e grava para a posteridade, mesmo sabendo o quão efémeras podem ser a vida e as coisas. E depois... sabe tão bem ver um filme assim!




CINEMA: “Uma Mulher Não Chora” / “Aus Dem Nichts”
Realização | Fatih Akin
Argumento | Fatih Akin e Hark Bohm
Fotografia | Rainer Klausmann
Montagem | Andrew Bird
Interpretação | Diane Kruger, Denis Moschitto, Numan Acar, Samia Muriel Chancrin, Johannes Krisch, Ulrich Tukur
Produção | Fatih Akin, Ann-Kristin Hofmann, Nurhan Sekerci-Porst, Herman Weigel
Alemanha | 2017 | Drama | 100 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
26 Dez 2017 | ter | 16:00


Fenómeno recorrente na actualidade, o terrorismo serve de ponto de partida para “Uma Mulher Não Chora”, filme do realizador alemão de origem turca, Fatih Akin. Dividido em três partes - “Família, Tribunal, Mar” (ou será “Inferno, Purgatório, Céu”?) - o filme é a história de uma vingança. Tendo perdido o marido e o filho num atentado bombista de contornos xenófobos e vendo o tribunal absolver os presumíveis terroristas, é pelas próprias mãos que Katja Sekerci (Diane Kruger) se compromete em fazer justiça. Da grande metrópole que é Hamburgo até à costa da Grécia, onde o ajuste de contas terá lugar, é toda uma deriva que leva a mulher a questionar-se perante a sua nova e dura realidade.

Inspirando-se nos atentados perpetrados na Alemanha por um grupo neonazi contra pessoas de origem turca entre 2000 e 2011 (e cujo processo judicial, todavia, decorre ainda), Fatih Akin parece ter como propósito chamar a atenção da sociedade alemã para os riscos reais da ascensão da extrema-direita no País. Apesar das boas intenções, o realizador adopta uma linha narrativa marcada pela previsibilidade e acaba por comprometer a própria bondade dos seus propósitos com a sequência final, gratuita e simplista. Com uma primeira parte excelente, o filme acaba por ir perdendo interesse aos poucos – as sequências do julgamento parecem ter mais a ver com os “dramas de tribunal” americanos do que com a realidade do sistema judicial alemão – para acabar da pior forma, roçando a banalidade e demonstrando uma flagrante ausência de ideias.

Apesar do falhanço que o filme constitui, Diane Kruger merece uma palavra de destaque pela interpretação brilhante desta esposa e mãe destroçada pela dor da perda. Com determinação e de forma convincente, ela carrega o filme sobre os ombros, conseguindo incarnar os diversos estados de alma que a sua personagem atravessa e mexer com o espectador. Com justiça, é dela o Prémio de Melhor Interpretação Feminina do Festival de Cannes 2017. A surpresa, pela negativa, vai para o facto deste filme ter arrecadado o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro, em luta directa com o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2017, “O Quadrado”, do sueco Ruben Östlund. Critérios!




CINEMA: “Barbara”
Realização | Mathieu Amalric
Argumento | Mathieu Amalric e Philippe Di Folco
Fotografia | Christophe Beaucarne
Montagem | François Gédigier
Interpretação | Jeanne Balibar, Mathieu Amalric, Vincent Peirani, Aurore Clément, Grégoire Colin, Fanny Imber, Pierre Michon
Produção | Patrick Godeau
França | 2017 | Drama, Biografia | 98 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
19 jan 2018 | sex | 18:30


Repartindo as atenções sobre três planos temporais distintos, “Barbara” é, ao contrário do que o título faria supor, mais um filme dentro do filme e menos um olhar sobre essa grande estrela da canção francesa que foi Barbara. É mais o trabalho de preparação e a forma como uma atriz mergulha na personagem e menos a voz, a presença em palco e fora dele, o inesperado anúncio do abandono da música pelo teatro, em pleno Olympia, canções intemporais como “L'Aigle Noir”, “Göttingen” e “Ma Plus Belle Histoire d'Amour” ou as suas interpretações de George Brassens ou Jacques Brel. “Barbara” é mais a “outra” e menos ela mesma.

Da forma como imagens de arquivo e imagens de ficção se misturam e confundem, retira o filme a sua maior força. Os primeiros planos revelam-se fundamentais para compreender a dimensão e a importância desta “sobreposição”, de tal forma o espectador irá ser confrontado, ao longo do filme, com o desafio de perceber quem é quem. A realização é estilizada, privilegiando os ambientes elegantes, as cores rarefeitas, uma certa nostalgia. E há, naturalmente, um extraordinário trabalho de montagem, assinado por François Gédigier (“A Rainha Margot”, “Dancer in the Dark” ou o muito recente “O Amante de um Dia”).

Jeanne Balibar dá corpo a Barbara e a sua interpretação é irrepreensível. As semelhanças no plano físico são enormes e as qualidades vocais de Balibar impressionam e perturbam à vez. Ela é o filme e o filme é ela [talvez isto não seja inteiramente verdade, visto que Mathieu Amalric, realizador que faz de realizador (!), tem igualmente uma interpretação de grande nível, plena de sobriedade e contenção]. Apresentado na secção “Un Certain Regard” do último Festival de Cannes, “Barbara” alcançou o Prémio pela sua visão poética e foi igualmente recompensado com o Prémio Jean Vigo 2017. Um filme cuja visão, incondicionalmente, se recomenda.




CINEMA: “O Amante de um Dia”” / “L'amant d'un jour”
Realização | Philippe Garrel
Argumento | Jean-Claude Carrière, Caroline Deruas-Garrel, Philippe Garrel e Arlette Langmann
Fotografia | Renato Berta
Interpretação | Éric Caravaca, Esther Garrel, Louise Chevillotte, Paul Toucang, Félix Kysyl, Michel Charrel e Marie Sergeant
Produção | Saïd Ben Saïd e Michel Merkt
França | 2017 | Drama | 76 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
05 jan 2018 | sex | 18:30


Estreado nas Salas em Portugal neste início de ano, “O Amante de um Dia” centra-se em Gilles, um professor de filosofia interpretado por Ériv Caravaca que namora e vive com uma das suas alunas, Ariane (Louise Chevillotte). Tudo está bem até ao dia em que a filha de Gilles, Jeanne (Esther Garrel, filha do próprio realizador), da mesma idade de Ariane, vai morar com eles após colocar um ponto final na relação amorosa que mantinha com Mateo (Paul Toucang).

Quase 50 anos após “Le Révélateur”, o seu filme de estreia de 1968, Philippe Garrel regressa aos filmes para completar a chamada “Trilogia do Amor”, iniciada em 2013 com “Ciúme” e continuada dois anos depois com “À Sombra das Mulheres”. Filmado a preto e branco, “O Amante de um Dia” é uma evocação do amor naquilo que nele pode haver de mais carnal e convulsivo. Graças a uma realização depurada, o realizador trata com a devida sensibilidade os males que atormentam o coração das personagens, passando para o espectador as lágrimas de Jeanne face ao primeiro desgosto amoroso da sua vida, uma pontinha de malícia ante o olhar apaixonado de Ariane ou a raiva nos punhos de Gilles, duplamente traído.

Gerindo o filme com maestria, Philippe Garrel questiona essa multiplicidade de assuntos que pautam as relações afectivas (a liberdade e a fidelidade no amor, a diferença de idades, as relações entre ao físico e o intelecto) sem emitir julgamentos, limitando-se a acompanhar as subtis inflexões da vida em redor do eterno tema do desejo e do amor. Do filme retém-se as figuras das duas mulheres, da sua juventude e dos seus impulsos, e do homem, simultaneamente pai e amante, figura central neste triângulo, parecendo dominar os acontecimentos mas finalmente incapaz de exercer qualquer real influência naquilo que se desenrola à sua volta. História de amor intemporal, “O Amante de um Dia” merece ser visto de forma atenta.




CINEMA: “Corpo e Alma” / “Teströl és lélekröl”
Realização e Argumento | Ildikó Enyedi
Fotografia | Máté Herbai
Interpretação | Morcsányi Géza, Alexandra Borbély, Zoltán Schneider, Ervin Nagy, Tamás Jordán, Zsuzsa Járó, Réka Tenki, Júlia Nyakó e Itala Békés
Produção | Ernö Mesterházy, András Muhi e Mónika Mécs
Hungria | 2017 | Drama | 116 minutos
Cine-Teatro de Estarreja
28 dez 2017 | qui | 21:30


É no universo violento dum matadouro que se desenrola esta história de amor que junta Endre, o Diretor Financeiro, e Mária, a nova responsável pelo controlo de qualidade. Da diferença de idades às suas peculiaridades físicas e psíquicas, são muito mais as diferenças do que os aspectos comuns a ambos. Tudo acaba por se jogar, literalmente, no campo dos sonhos e o improvável acontece.

Dezoito anos depois de “Simon the Magician” / “Simon mágus”, Ildikó Enyedi regressa à realização com este surpreendente “Corpo e Alma”. Ao longo de praticamente duas horas, a atenção do espectador recai sobre uma história onde a brutalidade e insensibilidade dos que lidam com a morte dos animais serve de contraponto à violência interior daqueles que desconhecem as pulsões vitais ou a forma como lidar com elas. O quotidiano veste-se das cores do sangue e a paz e a liberdade estão para lá do real. Neste campo, a figura da jovem mulher chega a ser dilacerante, na sua inabilidade em gerir o turbilhão de emoções que brotam duma experiência com tanto de concreto como de onírico, estreitada que está pelas margens opressivas da doença de Asperger que tomou conta dela.

Sangue que corre, artérias que pulsam, vida e morte num vai e vem constante, “Corpo e Alma” é o grande filme de 2017. O Urso de Ouro, galardão máximo do Festival Internacional de Cinema de Berlim, faz jus à qualidade patente a todos os níveis: um argumento inteligente e sensível da própria Ildikó Enyedi, uma cinematografia depurada e belíssima de Máté Herbai, uma montagem rigorosa e contida de Károly Szalai e, sobretudo, uma extraordinária interpretação de Alexandra Borbély, no papel de Mária. Da Hungria, com amor, um símbolo de exaltação à vida e um grito à liberdade.




CINEMA: “120 Batimentos por Minuto” / “120 battements par minute”
Realização | Robin Campillo
Argumento | Robin Campillo e Philippe Mangeot
Fotografia | Jeanne Lapoirie
Interpretação | Nahuel Pérez Biscayart, Arnaud Valois, Adèle Haenel, Antoine Reinartz, Ariel Borenstein, Félix Maritaud, Aloïse Sauvage, Coralie Russier, Saadia Bentaïeb
Produção | Hugues Charbonneau e Marie-Ange Luciani
França | 2017 | Drama | 140 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
29 dez 2017 | sex | 16:00


Não temos tempo, estamos a morrer!” É este o grito de desespero de todo um grupo de seropositivos na França de Miterrand, há 25 anos atrás, numa altura em que as respostas da própria medicina ao flagelo do vírus HIV/SIDA são frouxas e inconclusivas. Numa espiral de medo e revolta, sem tábuas de salvação a que possam agarrar-se, buscam todas as formas de chamar a atenção para um problema em estado de emergência, vendo os seus esforços esbarrarem na inabilidade dos governos, no calculismo da indústria farmacêutica e na indiferença da sociedade.

Em “120 Batimentos por Minuto”, o cineasta francês de ascendência marroquina, Robin Campillo, centra a acção do filme no grupo activistaAct Up - Paris, uma associação militante de luta contra o SIDA, criada em 1989 a partir de elementos da comunidade homossexual. É precisamente nesta faceta quase documental do filme que reside a sua grande força, já que Campillo consegue imprimir um ritmo alucinante, quer na forma como regista as reuniões do grupo e as suas acções-relâmpago sempre espectaculares, quer no conteúdo, visando contrariar ideias feitas (ainda hoje!) de que a doença só acontece aos outros, sendo este “outros” os grupos marginais LGBT, prostitutas e estrangeiros, oriundos sobretudo do continente africano. Pena que este “estado de graça” do filme não dure sempre...

A partir de dada altura, Campillo relega o grupo e as suas iniciativas para segundo plano, virando-se quase em exclusivo para a personagem de Sean, interpretada pelo argentino Nahuel Pérez Biscayart. A verdade é que, desde então, “120 Batimentos por Minuto” entra em queda livre, que só não é mais acentuada graças às superiores interpretações de Arnaud Valois, no papel de Nathan, o companheiro de Sean, e do próprio Nahuel Biscayart. A economia narrativa do filme bascula, os diálogos tornam-se previsíveis, as cenas de sexo roçam a obscenidade. Para comprometer ainda mais o quadro, Campillo obstina-se em não deixar nada de fora, misturando a crise do sangue contaminado com as paradas do dia do orgulho, as questões religiosas em torno do uso do preservativo com a necessidade das aulas de educação sexual a partir do ensino básico, os ensaios clínicos com a eutanásia. Embora o filme acabe por regressar ao registo inicial, há danos que são já impossíveis de reparar. Dommage!




CINEMA: “Uma Mulher Fantástica” / “Una Mujer Fantástica”
Realização | Sebastián Lelio
Argumento | Sebastián Lelio e Gonzalo Maza
Fotografia | Benjamín Echazarreta
Interpretação | Daniela Vega, Francisco Reyes, Luis Gnecco, Aline Küppenheim, Nicolás Saavedra
Produção | Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín, Sebastián Lelio e Gonzalo Maza
Chile, Alemanha, Estados Unidos, Espanha | 2017 | Drama | 104 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
26 Dez 2017 | ter | 16:00


Com assinatura do chileno Sebastián Lelio, chega às salas de cinema “Uma Mulher Fantástica”, a história dum caso amoroso entre um empresário do ramo textil, já próximo dos sessenta anos, e uma jovem empregada de restaurante e aspirante a cantora lírica. Quando Orlando morre inesperadamente, fulminado pela rotura de um aneurisma, Marina vê-se confrontada com a conservadora família de Orlando e com a própria sociedade, sendo obrigada a provar aquilo que realmente é: uma mulher completa, decidida, honesta... fantástica.

Doseando, de forma inteligente, drama e suspense, “Uma Mulher Fantástica” surge ancorado num argumento sólido, introduzindo subtilmente os elementos necessários à construção da trama e desarmando o espectador à medida que o filme vai avançando. Para tal, conta com a excelente interpretação de Daniela Vega que assume de forma rigorosa a personagem complexa de Marina, oferecendo ao filme a dose exacta de autenticidade e realismo.

Galardoado com o Urso de Prata do 67º Festival Internacional de Cinema de Berlim para Melhor Argumento, “Uma Mulher Fantástica” discorre sobre uma certa moralidade, sem cair no erro de emitir julgamentos. É um filme que defende, com determinação, o direito à aceitação e integração daqueles que, de alguma forma, são discriminados, apenas porque fogem a uma certa norma. Um filme que, mesmo correndo o risco de poder ser mal interpretado, não hesita em levar essa ousadia até ao fim. Diríamos apenas que algumas soluções menos conseguidas, já na sua parte final, acabam por fazer com que, no seu todo, este não seja um filme “fantástico” mas, ainda assim, estamos perante uma obra francamente meritória e cuja visualização se recomenda sinceramente.




CINEMA: “Lucky”
Realização | John Carroll Lynch
Argumento | Logan Sparks e Drago Sumonja
Interpretação | Harry Dean Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Ed Begley Jr., Tom Skerritt, Beth Grant, James Darren, Barry Shabaka Henley e Yvonne Huff
Produção | Ira Behr, Danielle Renfrew, Greg Gilreath, Adam Handricks, Richard Kahan, John H. Lang, Logan Sparks e Drago Sumonja
Estados Unidos | 2017 | Drama | 88 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
08 Dez 2017 | sex | 18:30


Parece-me ver em “Lucky”, filme de John Carroll Lynch estreado esta semana entre nós, a confirmação de que “a vida é feita de pequenos nadas”. Um filme que acompanha o quotidiano duma pessoa que dobrou já os noventa anos, mas cuja vitalidade e perspicácia o mantém atento e integrado na pequena comunidade à qual pertence. Em “Lucky”, os pequenos-nadas são mesmo pequenos-nadas. O despertar ao som de música mexicana, o acender do primeiro cigarro do dia, os exercícios de ioga, o café, as conversas casuais, as palavras cruzadas, os percursos, as compras, os concursos de televisão, o palavrão gritado no mesmo sítio contra o mesmo alvo, tudo é rotina.

E como é que o espectador sobrevive a hora e meia de rotina? A resposta está em Harry Dean Stanton, o “Lucky” do filme, personagem ímpar no galarim do cinema e que tem aqui o papel duma vida. Afastado do grande ecrã desde 2013, surge agora a interpretar uma personagem fictícia baseada na sua pessoa, naquele que acabaria por ser o seu último filme, já que morreu no passado dia 15 de Setembro, aos 91 anos de idade. E fá-lo, como sempre o fez, de forma sublime, sublinhando a relatividade da vida e provando que “velhos são os trapos”.

Figura omnipresente ao longo do filme, Harry Dean Stanton catalisa atenções e despoleta emoções. Ele e a sua personagem confluem numa entidade única, indissociável. O real mistura-se com a ficção graças a essa capacidade interpretativa única e, não raras vezes, vemos o filme roçar as margens do documentário, sem, contudo, invadir esse espaço. Faces duma mesma moeda, o choro e o riso são para aqui chamados. Para a posteridade fica a interpretação única de “Volver, volver”, na qual Harry Dean Stanton se faz acompanhar por um trio de mariachis, o gesto de rebeldia ao acender um cigarro no interior do Café e aquele sorriso derradeiro ao desviar os olhos dum cacto com o triplo da sua altura e o dobro da sua idade.




CINEMA: “O Quadrado”,
Realização e Argumento | Ruben Östlund
Interpretação | Claes Bang, Elisabeth Moss, Dominic West, Terry Notary, Christopher Læssø, Marina Schiptjenko, Elijandro Edouard, Daniel Hallberg, Martin Sööder, Sofie Hamilton
Produção | Philippe Bober, Erik Hemmendorff
Suécia, Alemanha, França, Dinamarca | 2017 | Drama | 142 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
26 Nov 2017 | dom | 18:30


Christian é o ilustre curador de um Museu de Arte Contemporânea de Estocolmo. Homem respeitado, parece seguro do papel da arte enquanto instrumento de mudança e mostra-se um apoiante convicto das causas nobres. A sua próxima exposição, “O Quadrado”, é uma instalação que pretende evocar o altruísmo em quem a vê, recordando-nos o nosso papel enquanto seres humanos responsáveis, por nós como pelos outros. Mas às vezes é difícil viver à altura dos nossos ideais: A equipa de Relações Públicas do Museu cria uma campanha inesperada para “O Quadrado” e a reacção inflamada do público lança Christian, bem como o próprio museu, numa crise de identidade profunda. Entretanto, a atitude incauta de Christian ao roubo da sua carteira e do seu telemóvel vai conduzi-lo a situações das quais se envergonhará.

Inteligente, acutilante e deliciosamente desconfortável,“O Quadrado” é uma metáfora do viver e do sentir nas sociedades modernas. Ele revela, de forma impiedosa, uma condição humana assente no preconceito, constrangida pela crescente desigualdade social, ferida pela perda de valores morais e em relação à qual as novas tecnologias assumem um papel desestruturante, reforçando o clima generalizado de desconfiança em relação ao outro. É por isso que a instalação denominada “O Quadrado”, da Argentina Lola Arias, alcança uma dimensão superior na hierarquia moral dos homens, ao afirmar-se um “santuário da confiança e da boa vontade”. E é por isso que a liberdade de expressão, primado da criação artística, se vê tão maltratada no interior daquele mesmo quadrado.

Desenvolvendo-se a partir duma narrativa que fere, pela forma crua como aponta o dedo a cada um de nós, o filme não tem no conteúdo, apenas, o seu grande trunfo. A forma como se expande até à orla do insuportável é absolutamente brilhante. As cores glaucas num céu que nunca se vê, os contra-picados que apequenam os sujeitos, a fotografia e os enquadramentos estudados ao pormenor têm o contraponto perfeito num apontamento que se busca no lixo no meio da chuva, numa criança que se insurge contra uma falsa acusação ou num jantar de gala subitamente transformado numa selva ameaçadora. O filme recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2017 e que bem merece a distinção. É, a todos os títulos, um fresco notável, que embora não nos redima face àquilo que somos, sempre nos vai dizendo que nunca é tarde para fazermos algo pelos outros. E por nós próprios!




CINEMA: “A Floresta das Almas Perdidas”,
Realização e Argumento | José Pedro Lopes
Interpretação | Daniela Love, Jorge Mota, Mafalda Banquart, Lília Lopes, Tiago Jácome e Lígia Roque
Produção | Ana Almeida
Portugal, Emirados Árabes Unidos, Rússia, Espanha | 2017 | Drama, Terror | 71 minutos
Cinema Dolce Espaço, Ovar
11 Nov 2017 | sab | 21:30


No início da sessão, José Pedro Lopes, o realizador de “A Floresta das Almas Perdidas” explica ser este “um filme autoral, um filme de terror, a meio-caminho do drama com um pouco de comédia”. No final acrescentará que, tendo tido a possibilidade de fazer este filme [entenda-se, “não sabendo se surgirão condições para realizar outro”], quis meter lá tudo aquilo que para ele fazia sentido, aquilo de que gosta em Cinema. E percebe-se isso com o avançar do filme, duma certa atmosfera oriental, sugerida no próprio título e na sua relação com Aokigahara, a floresta dos suicídios, aos registos que podem ser vistos como uma homenagem aos seus referentes – nomeadamente a imaginativa e vibrante cinematografia sul-coreana. A verdade é que, após um começo deveras prometedor, o filme acaba por conviver mal com esta “misturada” e, apesar do esforço evidente em preservar a necessária coerência, não consegue escapar a uma certa dispersão e acaba por ir perdendo força, como uma onda que vem morrer na praia.

E então, não se arranja nada de bom para dizer acerca do filme? Certamente que sim. Aliás, quero dizer desde já que não fiquei indiferente ao filme, que gostei do filme. As interpretações são, no seu conjunto, excelentes, destacando-se Daniela Love. É notável a forma como a atriz veste a pele de Carolina, a personagem principal. A sua enorme facilidade em transitar entre vários registos diferentes, sem perder nunca o sentido da personagem, é revelador duma grande maturidade. A tipificação do “serial killer”e a inscrição da sua matriz sócio-comportamental neste particular grupo é outro dos pontos fortes do filme, pela coerência que confere à personagem. Sobretudo, embora tratando-se de um filme potencialmente perturbador do ponto de vista psicológico pela temática que aborda, não é um filme “pesado”, antes vê-se com um sorriso, já que se assume num território da fantasia onde nada deve ser levado a sério. Esta é, na minha maneira de entender o género de Terror, o grande trunfo do filme e ao qual me sinto rendido. Uma palavra ainda para a imagem, com assinatura de Francisco Lobo, e que é duma enorme beleza; a forma como são definidos os enquadramentos e se “abusa” do plano fixo mostra-nos estarmos perante um Diretor de Fotografia excecionalmente talentoso. Suspeito que a opção pelo Preto e Branco não é, globalmente, um trunfo a favor do filme, mas é inegável que Francisco Lobo tira daí um enorme partido e acaba por “suavizar os danos”.

Regressando ao início, regressamos a José Pedro Lopes e também a Daniela Love, que o acompanhou nesta noite muito especial no Cinema Dolce Espaço, em Ovar. A sua presença entre nós é mais uma prova do respeito que a Filmógrafo, a distribuidora que explora este pequenino mas simpático espaço da nossa cidade, nos dedica. Um respeito e um carinho que não parece ter a necessária correspondência da parte do público, tão baixa é a afluência àquela Sala. Resta dar os parabéns à Filmógrafo por esta iniciativa em particular e deixar uma palavra de agradecimento pela enorme resiliência que faz questão de demonstrar. Se um dia perdermos esta Sala, não é a meia dúzia de gatos que a frequentam habitualmente que saem a perder. Esses amam o cinema e saberão ir “miar” para Estarreja, Espinho, Gaia ou Porto. É, uma vez mais, a cidade e as suas gentes quem sai a perder!




CINEMA: “Al Berto”
Realização e Argumento | Vicente Alves do Ó
Interpretação | Ricardo Teixeira, José Pimentão, Raquel Rocha Vieira, José Leite, Gabriela Barros, Ana Vilela da Costa, João Villas-Boas, Mia Tomé, José Condessa
Produção | Ukbar Filmes, Pandora da Cunha Telles, Pablo Iraola
Portugal | 2017 | Drama | 109 min.
Cinema Dolce Espaço, Ovar
20 out 2017 | sex | 16:00


Al Berto” assume-se como a primeira longa-metragem sobre o poeta Alberto Raposo Pidwell Tavares, abordando o seu regresso a Portugal após uma longa estadia em Bruxelas onde estudou Belas Artes. Estamos no Verão de 1975 e Sines transpira a vida excêntrica e avant garde de Al Berto pouco tempo após a revolução dos cravos. Mas até a liberdade tem limites e, para as gentes da terra, o comportamento de Al Berto e dos amigos será alvo da maior condenação.

Vida excêntrica e avant garde, muita. Poesia, percurso literário, muito pouco, quase nada. Se a originalidade em Al Berto, o “poeta maldito”, se manifesta na o ousadia de fazer do corpo textual uma metáfora viva da vida do seu corpo e de o transformar em textos-imagens para que possam ser lidos, nada disso é vertido no filme. Esta é, pois, a história dum jovem concreto numa vila concreta, que poderia ser qualquer outro jovem, noutra qualquer vila deste País a despertar para o Mundo do pós-25 de Abril imediato.

Tudo o mais são clichés, que outra coisa não seria de esperar. Ideais soltas que não passam disso mesmo, que se ficam pela rama e que levam o espectador a dar o seu tempo por mal empregue. Definitivamente, Al Berto - o poeta, pintor, editor e animador cultural que nos deixou há duas décadas, aos 47 anos de idade – merecia mais!




DOCUMENTÁRIO: “Pára-me de repente o pensamento”,
de Jorge Pelicano
com a participação de Miguel Borges
Portugal, 2014


[Pára-me de repente o Pensamento...
- Como se de repente sofreado
Na Douda Correria... em que, levado...
- Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento.]

- Identificas-te com isto? Isto diz-te alguma coisa? Fala-me disto. Eu vou trabalhar é isto. Preciso que me ajudes a interpretar isto. Se te identificas,... se já sentiste isto... O que é que isto é para ti?

- É verdade!”

Pára-me de repente o pensamento”, de Jorge Pelicano, é um filme-verdade. A verdade dos atores-não-atores, doentes esquizofrénicos do Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto, e a verdade do ator Miguel Borges, que só nessa condição almeja atingir a dimensão de verdade no contexto físico do filme.

Como um espelho visto de frente, olhos nos olhos, dessa verdade emerge, com uma força esmagadora, aquilo que mais nos confronta com o nosso próprio eu, no que ele tem de essencial, de primário e instintivo, sem preceitos nem defesas. E que nos obriga a recuar à idade dos porquês, onde pulsa a força dos extremos.

É um filme como nunca vi outro igual, sereno e convulsivo ao mesmo tempo, como o são os homens e a sua natureza. Um filme desarmante, profundamente humano na forma como dá a ver as suas personagens/pessoas, as compreende e aceita. Na forma como as ama!

Sem comentários:

Enviar um comentário