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domingo, 2 de novembro de 2025

ÓPERA: "Tosca" | Giacomo Puccini



ÓPERA: “Tosca”,
de Giacomo Puccini
Libreto | Luigi Illica e Giuseppe Giacosa
Interpretação | Chantal Garsan, David Baños, Jorge Tello, Esteban Serrano, Jesús Cordón, Alex Rull, Rafa Casette, Coro da Companhia
Orquestra Materlirica
Direção musical | José Colomé
Direção de cena | Federico Figueroa 
Direção artística | María José Molina
Produção | Materlirica España
Maiores de 16 Anos | 165 Minutos (com intervalo)
Centro de Artes de Águeda
31 Out 2025 | sex | 21:00


No universo operário, “Tosca”, de Giacomo Puccini, é uma daquelas obras que logram concentrar em si a alquimia perfeita entre música, teatro e paixão humana. No palco do Centro de Artes de Águeda, a companhia espanhola Materlírica apresentou uma versão intimista e coesa deste drama pucciniano, encerrando a digressão portuguesa que passou também pelos Coliseus do Porto e de Lisboa. Vertiginosa e cinematográfica, a partitura de Giacomo Puccini — estreada em Roma em 1900 — encontrou aqui uma leitura de câmara, reduzida a vinte e dois músicos, que em nada traiu o seu ímpeto dramático. Sob a direção firme e sensível do maestro José Colomé, a orquestra revelou uma clareza surpreendente: os timbres expostos realçaram a arquitetura emocional da obra, permitindo que as vozes respirassem e que cada motivo melódico emergisse com nitidez quase pictórica. Longe da grandiloquência sinfónica habitual, esta Tosca mostrou como a contenção pode também amplificar a intensidade — a emoção expandiu-se não pela força do volume, mas pela precisão e pelo gesto teatral.

No centro da encenação, assinada pela própria companhia, esteve a fidelidade à narrativa e ao impulso dramático da ópera, privilegiando o jogo de olhares e a fisicalidade dos intérpretes. O espaço cénico, sugerindo a igreja, o palácio e o castelo, afigurou-se algo pobre, mas a companhia soube investir nos aspectos fulcrais da obra, compensando a parcimónia de recursos com a simbologia dos contrastes: o sagrado e o profano, a fé e o poder, a pureza e a corrupção. Menos fulgorante, mas mais expressiva, a iluminação desenhou os volumes dos corpos e substituiu com engenho os grandes aparatos visuais que esta obra por vezes reclama. O “Te Deum” que encerra o primeiro acto constituiu um belo momento coral, com Jorge Tello (Barão Scarpia, o chefe da polícia) a dominar a cena com voz ampla e presença magnética, encarnando o vilão com uma assumida mistura de frieza e desejo e mostrando a perversão do poder diante da fé.

Chantal Garsan construiu uma Floria Tosca de grande densidade psicológica, movida entre o ciúme e a transcendência. A sua voz, de um profundo lirismo e capaz de súbitas expansões dramáticas - embora certas passagens pedissem uma maior contenção nos agudos -, iluminou o segundo acto, com “Vissi d’arte” a soar como um grito de inocência diante da brutalidade do mundo. A cantora soube captar o recolhimento íntimo que Puccini exige: o silêncio após a última frase - “Perché, Signor?” - suspendeu o tempo, comovendo mesmo quem conhece cada compasso da ária. Ao lado dela, David Baños deu corpo a um Mário Cavaradossi generoso e idealista, de timbre límpido e fraseado elegante. A sua “E lucevan le stelle”, no terceiro acto, foi um dos pontos altos da noite: o tenor controlou o vibrato e a dinâmica com enorme subtileza, transformando a despedida da vida num instante de pura beleza resignada. Entre os dois, a química foi palpável e essa ligação emocional sustentou a tragédia até ao salto final de Tosca, desenhado num claro-escuro simbólico, mais espiritual do que literal.

A opção por uma orquestra de câmara revelou-se decisiva para o sucesso da produção. A textura reduzida abriu espaço à respiração teatral e à articulação dos leitmotivs puccinianos, tão essenciais à coerência da ópera. O maestro José Colomé equilibrou exemplarmente cordas e madeiras, mantendo a pulsação e a tensão contínua da partitura. O Centro de Artes de Águeda, com a sua acústica límpida e proximidade entre público e palco, contribuiu para que cada nuance fosse audível, dos pianíssimos que antecedem “o beijo da Tosca” às explosões orquestrais dos momentos de apoteose. A recepção final, marcada pela ovação entusiástica de uma sala toda de pé, confirmou que esta “Tosca” da Materlírica não viveu de artifícios, mas de uma verdade teatral rara: a que nasce quando a música e o gesto se tornam um só. Foi, em suma, uma celebração do poder expressivo da ópera, uma noite em que Puccini soou simultaneamente íntimo e universal, lembrando-nos por que razão a “Tosca” continua a ser, mais de um século depois, um dos maiores triunfos do repertório operático mundial.

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