CINEMA: “O Agente Secreto”
Realização | Kleber Mendonça Filho
Argumento | Kleber Mendonça Filho
Fotografia | Evgenia Alexandrova
Montagem | Matheus Farias, Eduardo Serrano
Interpretação | Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Carlos Francisco, Alice Carvalho, Robério Diógenes, Hermila Guedes, Igor de Araújo, Ítalo Martins, Laura Lufési, Udo Kier, Roney Villela, Kaiony Venâncio, Isabél Zuaa, Geane Albuquerque, Robson Andrade, Thomás Aquino, Jimmy Astley
Produção | Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Brasil, França, Países Baixos, Alemanha | 2025 | Drama, Thriller, Crime | 158 Minutos | Maiores de 14 anos
UCI Arrábida 20 – Sala 13
10 Nov 2025 | seg | 14:45
Em “O Agente Secreto”, Kleber Mendonça Filho confirma-se como um dos autores mais atentos às cicatrizes que a ditadura militar deixou no imaginário brasileiro. Depois de “Aquarius” e “Bacurau”, o realizador regressa às origens para construir um thriller político que ironiza o próprio género. O título, que remete para a espionagem e para o suspense, é uma armadilha: Mendonça desconstrói as convenções narrativas para revelar o absurdo de um país em que a violência institucional se confunde com a rotina. A câmara observa detalhadamente o imobilismo social, captando o desalento de uma nação obrigada a viver sob as garras da ditadura. Em vez da acção frenética dos filmes de espionagem, o que encontramos no filme é o ritmo lânguido e hipnótico que se tornou imagem de marca do realizador — um tempo cinematográfico que se expande para permitir que o espectador respire o peso da história e reconheça, no silêncio e na lentidão, a persistência da repressão e do medo.
Marcelo, interpretado com assombrosa contenção por Wagner Moura, é o centro dessa alegoria. O seu regresso à cidade do Recife, motivado por questões familiares, converte-se num mergulho íntimo num país que ainda vigia os seus próprios fantasmas. A imagem do corpo abandonado no posto de gasolina, ignorado pela polícia e pelos transeuntes, resume o estado de letargia e de inanição colectiva. A “missão secreta” do protagonista não é a de um espião clássico, mas a de um homem que busca um sentido num território corroído por um poder difuso e invisível. Mendonça transforma o gesto de recordar em acto de resistência, cada lembrança um desafio à ordem imposta, cada reencontro um perigo político. Moura imprime à personagem uma humanidade dolorosa - o olhar cansado, a raiva contida, a ternura que sobrevive à descrença -, compondo um retrato que transcende a narrativa e se inscreve na memória emocional do espectador.
Visualmente rigoroso e conceptualmente ambicioso, “O Agente Secreto” é também um manifesto sobre o poder da imagem. Vencedor dos prémios de Melhor Realizador e Melhor Actor em Cannes, o filme demonstra o domínio técnico de Kleber Mendonça Filho, notável na forma como combina enquadramentos simétricos, profundidades de campo vertiginosas e uma montagem que alterna a contemplação com a urgência. A cidade do Recife, filmada como um organismo vivo, pulsa entre o passado e o presente, entre o documento e a ficção. A longa duração - 160 minutos de um cinema que rejeita a urgência - exige entrega, mas recompensa o espectador com um desfecho que funde emoção, política e poesia. Quando o protagonista confessa já não distinguir entre o bem e o mal, o filme atinge o seu ponto mais doloroso: a constatação de que o poder não precisa mais de reprimir - basta-lhe doutrinar a auto-censura. “O Agente Secreto” é, enfim, uma parábola sobre o Brasil contemporâneo, mas também um espelho universal: o retrato de um mundo que, sob o pretexto da segurança, vai trocando a liberdade pelo silêncio.
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