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quinta-feira, 6 de junho de 2024

LIVRO: "Memórias Minhas"



LIVRO: “Memórias Minhas”,
de Manuel Alegre
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2024


“Salgado Zenha tinha dito que o 25 de Abril foi o primeiro de um conjunto de factos políticos que anunciaram uma nova era. Revolução pioneira, porque, apesar de todos os desvios e tentações, mostrou ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair numa nova ditadura. E assim abriu caminho às transições democráticas em Espanha e na Grécia, no Brasil e em outros países latino-americanos. Como recuperar o espírito precursor e pioneiro do 25 de Abril, sem voltar às utopias irrealizáveis? Primeiro que tudo resistir. E começar dentro de um partido que estava a mudar de natureza.”

É de resistência que este livro nos fala. De resistência e de combate político, de convicções e afirmação de vontades, de escolhas acertadas e outras nem tanto, de lealdade, solidariedade, dedicação altruísta e entrega sem limites. De amigos verdadeiramente amigos, de amigos assim-assim, de inimigos que viriam a tornar-se amigos e, como não podia deixar de ser, do seu contrário, também. De momentos incontornáveis da nossa história ao longo das últimas seis décadas, entre “a noite mais triste, em tempos de solidão” e a liberdade a abrir-se em flor nesse “dia inicial inteiro e limpo”. De poetas e de poemas, da literatura como afirmação de princípios e valores, de combate à solidão, de arma que desarma. E de utopia, desse futuro inscrito no presente que, como o sonho, faz com que o mundo “pule e avance”. “Memórias Minhas” é a história de um homem a confundir-se com a história de um país, um olhar lúcido sobre os mistérios e contradições da política e de quem a faz, a constatação de um mundo em queda livre, “com novos poderes, novos meios cada vez mais sofisticados, novas e surpreendentes batotas eleitorais”. E que se (e nos) interroga: “Como resistir?”

A referência a Clemente da Silva Mello Soares de Freitas, tio-trisavô de Manuel Alegre que, apanhado de armas na mão a defender as linhas liberais em 1828, foi preso, enforcado e decapitado na Praça Nova, no Porto, e a cabeça espetada num pau em frente à casa de família, em Aveiro, é tema de abertura deste livro. Numa família onde, segundo o escritor, há “liberais e miguelistas, monárquicos e republicanos, nobres e plebeus”, não deixa de ser significativa esta menção a um dos “mártires da liberdade”. A nota de inconformismo e de rebeldia, a vontade de juntar a sua voz à dos fracos e oprimidos, a importância de pensar pela própria cabeça (ainda que sob pena de poder vir a perdê-la), são traços indefectíveis do carácter de Manuel Alegre, desde que tomou partido contra o S de Salazar, até aos nossos dias, que no livro terminam com o abandono da política activa, uma solução de Governo chamada “geringonça”, a eleição de Marcelo de Rebelo de Sousa como Presidente da República e a morte de Mário Soares.

Embora negando tratar-se de uma autobiografia, Manuel Alegre oferece-nos um livro apaixonante que nos leva ao encontro da nossa história recente, esclarecendo alguns dos seus episódios mais marcantes e enriquecendo-os com a clareza de quem neles teve parte activa. Das lutas académicas à ida para Angola, com passagem pelos Açores, durante a guerra colonial, da militância comunista ao exílio em Paris e Argel, do regresso após o 25 de Abril e das grandes batalhas travadas em nome de um Partido Socialista com uma visão democrática do marxismo e defensor dos princípios do socialismo em liberdade, é a palavra como arma, mesmo quando era proibida, o denominador comum de uma voz que em circunstância alguma se calou. São muitas as aventuras narradas neste livro e que têm como protagonistas nomes tão ilustres como os de Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner, Fernando Assis Pacheco, Adriano Correia de Oliveira ou Herberto Hélder e, num outro plano, os de Amílcar Cabral, António Ramalho Eanes, Jorge Sampaio, Salgado Zenha, Vítor Constâncio e Mário Soares. Será incómodo para alguns, mas é um livro arrebatador, que exprime a verdade do seu autor e se faz ouvir no combate às políticas neoliberais que teimam em tolher-nos os passos e negar-nos o sonho.

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