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sábado, 1 de junho de 2024

LIVRO: "Dona Pura e os Camaradas de Abril"



LIVRO: “Dona Pura e os Camaradas de Abril”,
de Germano Almeida
Ed. Editorial Caminho, 1999 (2ª edição, Junho de 2018)


“E continuámos pacientemente esperando, ouvindo agora as canções proibidas durante anos, Grândola era a rainha, mas também E Depois do Adeus, a gaivota voando, e só passada a uma hora da manhã do dia 26, quando eu comia um prato de camoca com leite, apareceu finalmente no ecrã a Junta de Salvação Nacional, garantindo, pela voz do general Spínola, a sobrevivência da Nação soberana no seu todo pluricontinental, permitindo a expressão de todas as correntes de opinião, garantindo a liberdade de expressão e pensamento, prometendo a eleição de uma futura Assembleia Constituinte. E depois disso vimos como todo um povo se dirigia a Caxias e se postava junto das suas portas e exigia sem palavras a libertação dos presos políticos. Era de facto uma bonita festa, Chico Buarque tem razão, já podíamos ir dormir descansados.”

É a 25 de Setembro que Natal festeja o 25 de Abril, rodeando-se de amigos em volta de uma cachupa regada com doses generosas de bom champanhe francês. Estudante em Lisboa, o jovem Natal vivia, como toda a gente, a euforia de uma revolução que pôs fim a quase cinco décadas de fascismo, quando chamou a si a tarefa de liderar “o destemido assalto a esse último antro do fascismo colonial” que era a Casa de Macau em Lisboa. Levada a cabo no dia 25 de Setembro, a campanha deu água pela barba ao exército regular português, posto em debandada quase em passo de corrida, mas acabaria por soçobrar quando, muito poucos dias depois, quatro terroristas carecas, de olhos em bico e eventualmente barbudos e armados unicamente de longas espadas, conseguiram desalojar os ocupantes com tanta brutalidade que Natal acabaria por se ver compelido a fugir para Cabo Verde a toque de caixa. Por esse motivo, ano a pós ano, é em Setembro que celebra a revolução. Quem isto nos conta é o primo de Natal, o narrador deste livro, Germano Almeida, que faz de “Dona Pura e os Camaradas de Abril” um repositório de memórias, com a verdade própria de quem faz da realidade ficção e da ficção realidade.

Apesar do quotidiano pouco interessante de um jovem cabo-verdiano, estudante de Direito em Lisboa com uma bolsa da Gulbenkian, no início dos anos 70 do século passado, e da forma simplista como se aborda a revolução dos cravos, é muito difícil não gostar de “Dona Pura e os Camaradas de Abril”. Plena de modéstia, despretensiosa e sincera, a escrita de Germano Almeida reflecte a experiência de um jovem oriundo das províncias ultramarinas e o choque provocado pela vida agitada na capital do país. A dificuldade em encontrar um quarto a preços compatíveis com os parcos recursos, um f’junzim pedra a fumegar no prato e regado com Campelo vendido ao litro ou a solidariedade entre as pessoas das ilhas, salvo quando se trata de esmifrar o parceiro numa lerpa fratricida, apanham desprevenido o leitor que talvez esperasse uma descrição completa e detalhada dos acontecimentos, certo de que a cada um a sua revolução. Germano Almeida até sai de casa, quer ver na rua essa revolução libertadora de povos e pátrias, mas conhece mal Lisboa e acaba por não ver revolução alguma. Afinal, de que pode ele falar?

Falar-nos-á de Dona Purificação, a “Dona Pura” do título, mulher dos seus 65 anos em cuja casa se hospeda, “mil e duzentos escudos com roupa lavada, dois banhos por semana e direito a estudar na sala de jantar”. Ela personifica o cabo-verdiano aculturado, que tem de Lisboa a visão de uma terra de oportunidades e olha com desconfiança e compadecimento os seus conterrâneos, sabendo-os “abusados”. A sua história de vida é a força motriz deste livro, o pretexto para Germano Almeida oferecer uma descrição completa da forma de ser e de estar num país onde as camisolas Lacoste estão na moda e um Lagosta geladinho é o sumo dos deuses, mas que vive em ditadura e onde se pressentem bufos e pides em cada esquina. Conversadora como ninguém, mostra-se alheia à política e aos políticos. Em contrapartida, sabe que o segredo de um bom café está na forma como é torrado, é uma cozinheira de primeira água, uma mãe ciosa das suas duas filhas e diz raios e coriscos do ex-marido. Desta forma, o autor oferece-nos uma visão romântica, mas assaz lúcida, de uma sociedade marcada pelos dissabores do colonialismo e que atravessou, num processo complexo de libertação, uma incontornável crise de identidade.

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