Páginas

quinta-feira, 30 de maio de 2024

TEATRO: “O Legado de Anne – Histórias Reais de uma Guerra Real”



TEATRO: “O Legado de Anne – Histórias Reais de uma Guerra Real”
Dramaturgia e encenação | Leandro Ribeiro, a partir de “O Diário de Anne Frank” e de outros escritos e depoimentos de sobreviventes do Holocausto
Cenografia, som e luz | Leandro Ribeiro
Figurinos e design | Marta Baldaia
Operação de som | Sara Oliveira, Jorge Azevedo
Fotografia | Manuel Vitoriano
Interpretação | Clara Oliveira, Daniela Adelino, Flávia Krishina, Gabriel Garrido, Hernani Sá, Inês Campos, Jorge Azevedo, José António Stréna, Josué Ferreira, Luís Rola, Mafalda Reis, Marco Nunes, Maria João Melo, Maria Reis, Nicole Gomes, Otília Borges, Palmira Baptista, Patrícia Quintino, Renata Resende, Rita Pereira, Sara Almeida, Sofia Oliveira, Sofia Miguel Costa, Yasmin Krishina
Apoio à produção | Clara Oliveira, Patrícia Quintino, Mónica Pinto, Marco Nunes
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
Sede da Sol d’Alma – Associação de Teatro
26 Mai 2024 | dom | 18:30


Com o cair da tarde chega ao fim, na sede da Sol d’Alma, “O Legado de Anne – Histórias Reais de uma Guerra Real”. Trata-se da última de quatro representações num extenuante fim-de-semana, sempre com a lotação esgotada. De mãos dadas à boca de cena, os actores recebem os aplausos que os espectadores, tomados pela comoção, lhes votam por largos minutos. Na mente de todos ecoam as derradeiras palavras de um extraordinário monólogo que lembra que “o neonazismo, os movimentos de extrema-direita e os discursos de ódio estão a aumentar”, reforçando a importância do legado de Anne Frank, verdadeiro “símbolo dos direitos universais da criança”. “A alma de uma única criança vale uma vida inteira”, ouve-se, como se de um grito se tratasse. Ironicamente, à mesma hora, um campo de refugiados em Rafah é bombardeado, causando a morte de dezenas de civis, entre os quais crianças, imagens que o mundo pôde testemunhar. Para Benjamin Netanyahu, o bárbaro e covarde massacre não passou de “um incidente trágico”, mas todos temos consciência de que este foi apenas mais um capítulo no processo genocidário do povo palestiniano, levado a cabo de forma determinada e sistemática até à plena tomada de posse de um território entendido pelo movimento sionista como “uma terra sem povo para um povo sem terra.”

Descrito como uma adaptação livre de “O Diário de Anne Frank” e de depoimentos de sobreviventes do Holocausto, “O Legado de Anne” conta-nos a história de uma adolescente que se vê forçada a esconder-se num anexo secreto da fábrica do seu pai, juntamente com mais sete pessoas, durante dois anos. Ao longo da sua estadia e à medida que a II Guerra Mundial alastra, uma outra guerra toma proporções enormes no seu interior. Na viragem para a adolescência, Anne vivencia sonhos, dúvidas e inseguranças. Passa pela puberdade fechada entre quatro paredes, ao lado de uma família e amigos que não a compreendem e são castradores da sua imaginação. Refugia-se então num diário ao qual dá o nome de “Kitty” e a quem confessa o desejo de “continuar a viver, mesmo após a morte”. No dia 4 de Agosto de 1944, o anexo é descoberto e os seus ocupantes, depois de interrogados, são deportados para o campo de extermínio de Auschwitz. Três meses mais tarde, Anne e a sua irmã Margot são transferidas para o campo de concentração de Bergen-Belsen, onde viriam a morrer de tifo em Fevereiro de 1945. O diário de Anne Frank é salvo e conhecerá uma primeira edição em 1947. Hoje está traduzido em cerca de setenta línguas e tem sido alvo das mais variadas adaptações para teatro e cinema, sempre com a mensagem implícita da tomada de consciência dos perigos da xenofobia, do racismo e do discurso de ódio contra as minorias.

Numa peça escrita e encenada com o coração, o olhar delicado e atento de Leandro Ribeiro impõe-se em cada detalhe. A comovente adaptação que faz deste clássico da literatura olha o espectador nos olhos, convida-o a entrar no anexo e pede-lhe que seja Anne. Não por um instante, não por duas horas ou dois anos, mas sempre. É por isso que esta Anne que nos deixa um legado é a mesma Anne que se anuncia sem apelidos. Por ela, por nós, importa que sejamos todos Anne e o façamos saber ao mundo. Explorando as potencialidades de um espaço cénico reduzido e dos adereços que o preenchem, a peça tem o seu início no exterior do edifício em ambiente de festa. A cena é breve, mas suficientemente eloquente para nos dar a ver as nuvens ameaçadoras que pairam sobre aquelas pessoas em cujas roupas se distingue a estrela de seis pontas com a inscrição “jude”. Entra-se na casa, passando por uma porta estreita onde somos obrigados a baixar a cabeça. A subida ao sótão representará uma descida aos infernos. Ali, a individualidade de cada um colide com a partilha dos espaços exíguos, a rigidez dos horários, a escassez de meios e de bens. Os diálogos são cirurgicamente interrompidos e fazem-se ouvir os testemunhos de sobreviventes dos campos de concentração, mostrando o quanto tudo nesta vida é relativo. Há um nó a estrangular-nos a garganta.

Mescla de juventude e veterania, os vinte e quatro actores em palco são outro enorme trunfo desta peça, graças à sua entrega e talento. Entre todos, permito-me destacar as muito jovens Inês Campos e Mafalda Reis, no papel de Anne (aos 13 e aos 15 anos, respectivamente) e ainda uma extraordinária Sofia Miguel Costa, no papel de Kitty, empenhadas e seguras nos momentos mais fortes e decisivos da peça. Enquanto testemunho do poder do espírito humano, contado pelos olhos de uma corajosa rapariga de 13 anos, o texto é sufocante, tornado suportável graças a uma encenação inteligente que, sem aligeirar, sabe balancear na exacta medida os momentos de tensão e as situações de maior leveza. Para lá das cortinas sabemos que o sol brilha, mas é do lado da escuridão que devemos permanecer: Do lado dos mais fracos, dos perseguidos e privados da sua liberdade, tomando como nossa a sua raiva e a sua dor. Por isso os olhos se rasam de lágrimas ao vermos que, oito décadas depois, a história como que se repete. Elevar a guarda em tempos incertos, abraçar Anne Frank e o seu legado e travar a barbárie que volta a cobrir-nos de vergonha e a manchar de sangue inocente toda a Humanidade é a extraordinária mensagem desta extraordinária peça. Para que o Holocausto jamais se repita.

[Foto: Manuel Vitoriano | https://www.facebook.com/soldalma]

Sem comentários:

Enviar um comentário