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domingo, 1 de agosto de 2021

LIVRO: "O Regresso de Julia Mann a Paraty"



LIVRO: “O Regresso de Júlia Mann a Paraty”,
de Teolinda Gersão
Ed. Porto Editora, Janeiro de 2021


“Mas esse mundo tornara-se silencioso porque o tinham silenciado: as ruas da aldeia inundadas, onde se andava de barco quando havia cheias, os cânticos nas procissões dos santos, as ruidosas festas de Carnaval, as canoas que a levavam até à Ilha Grande, a casa dos avós, o som dos remos cortando a água, o estalar dos foguetes que o avô Manuel Caetano lançava da praia. Mas agora as imagens não tinham som.”

Em boa hora segui a recomendação de um amigo e me atirei a “O Regresso de Júlia Mann a Paraty”, naquela que constituiu a minha primeira incursão no universo literário de Teolinda Gersão. E digo “em boa hora” pelo prazer que esta leitura me proporcionou, “três novelas que se entrecruzam de forma surpreendente” e que, lidas no seu todo, funcionam perfeitamente como um romance, a acção inteligentemente urdida em redor de três personagens improváveis mas com tanto para dizer uns aos outros e para nos dizer a nós, leitores. Segura na escrita, compondo com elegância e harmonia cada quadro, a autora guia-nos por caminhos de descoberta que se espalham para além das margens de um vasto e rico manancial, propondo um olhar sobre nós próprios, ao encontro de dúvidas e certezas, da forma como cada um olha o seu mundo.

“Freud pensando em Thomas Mann em Dezembro de 1938” é o título da primeira novela. Estamos no período entreguerras, numa Alemanha inflamada com a ascensão do nazismo, as perseguições aos judeus a fazerem-se sentir com toda a violência e a obrigarem Freud, então com 82 anos, a refugiar-se em Londres, onde viria a falecer uns meses mais tarde. Contemporâneos, figuras proeminentes de uma Alemanha que se avaliava culta entre os cultos, poucas vezes o pai da Psicanálise e o Prémio Nobel da Literatura terão trocado palavras de forma directa. Aos ensaios e discursos proferidos por Mann a propósito de Freud, das suas ideias e da sua obra, retribuía este com o envio de exemplares dos seus livros. Um relacionamento cordato que escondia um mar de críticas, recriminações e acusações de ordem vária, a fazerem adivinhar egos de uma envergadura descomunal e uma certa inveja no tocante ao sucesso alheio.

A segunda novela faz-nos recuar oito anos. “Thomas Mann pensando em Freud em Dezembro de 1930”, pode ser interpretado como uma resposta apriorística às reflexões de Freud na novela anterior. Às pontas deixadas soltas, pede Teolinda Gersão ao leitor o trabalho de as perceber e juntar. Há um clima de desconfiança latente em relação a Freud, ao que ele faria com as revelações de Thomas Mann se, por acaso, o apanhasse no seu divã de psicanalista. Isso nunca aconteceria, nunca poderia acontecer. Tão pouco Freud poderia saber que Mann chegara a encarar essa hipótese. A possibilidade de alguém penetrar na sua mente seria, por si só, aterradora. Uma carreira de sucesso, eis o que move exclusivamente o escritor, mesmo que nela assome um terrível pacto com o Diabo: “Goethe salva o seu Fausto, mas, se um dia eu vestir essa pele, não irei salvar-me.” São a insegurança e o medo a ditarem as suas leis.

Finalmente, “O regresso de Julia Mann a Paraty” fala da mãe de Thomas Mann, Julia, filha de pai alemão e de mãe brasileira, uma mistura de sangue ariano e sangue negro. Da obrigação de trocar o Brasil pela Alemanha com sete anos de idade apenas, ao “olhar de lado” da família do lado alemão, a um casamento forçado e às múltiplas peripécias que se seguiram, até ao tão desejado regresso a Paraty, esta novela é absolutamente preciosa na forma elegante e contida como está contada. Se as duas novelas anteriores dificilmente sobrevivem uma sem a outra, “O regresso de Julia Mann a Paraty” lê-se por si só com admiração e deleite. Percebe-se nela esse ensejo de fechar um ciclo, de dar um remate naquilo que terá ficado por dizer nos dois “episódios” anteriores, mas a abordagem que faz de uma vida de luta pela liberdade, contra a discriminação pelo facto de ser mulher e, ainda por cima, evidenciar traços de negritude, levam a que valha, por si só, a leitura deste livro. Uma grata surpresa!

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