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sábado, 1 de junho de 2019

LIVRO: "As Longas Noites de Caxias"



LIVRO: “As Longas Noites de Caxias”,
de Ana Cristina Silva
Ed. Planeta Manuscrito, Março de 2019


No rescaldo das eleições para o Parlamento Europeu, percebo com tristeza o peso da abstenção e penso o quanto isto é revelador daquilo em que nos vamos tornando. Independentemente das razões que assistam às pessoas, de esta poder ser uma forma de manifestar desagrado ou desencanto perante a política e os políticos, o que me parece estar cada vez mais em causa é a questão da memória enquanto vinco identitário da nossa história colectiva. Quanto deste alheamento é devido ao facto de termos cada vez mais dificuldade em lembrar o quanto devemos àqueles que deram tudo de si – inclusive a própria vida – para que escolher em liberdade pudesse ser hoje um direito de todos? Em seu nome, em nome da sua memória, votar é, mais do que um direito, um dever de consciência. E aos deveres de consciência não temos como fugir!

É sobretudo por isto que o mais recente romance da escritora Ana Cristina Silva é tão importante, porquanto nos recorda que a História não deve ser negada nem esquecida, avivando uma memória que se vai esboroando, ao mesmo tempo que nos devolve histórias dum período triste, sinistro, que alguns insistem em branquear. Fazendo incidir a sua atenção em “duas mulheres que ficaram na história da PIDE”, como podemos ler na capa do livro, “As Longas Noites de Caxias” é a história de todas as mulheres e de todos os homens que foram humilhados e isolados, sofreram a privação do sono, os espancamentos, a “estátua”, os insultos e as chantagens e que, como consequência imediata da tortura a que foram sujeitos, se viram acometidos de alucinações e delírio, perdas de conhecimento, ansiedade, insónia e tentativa de suicídio. Mas também daquelas figuras sinistras que, pretendendo justificar o injustificável, perseguiram , torturaram e mataram.

Os méritos de “As Longas Noites de Caxias”, porém, não se esgotam neste trazer à superfície os lugares, os nomes e os acontecimentos que marcaram um tempo que importa lembrar. Ana Cristina Silva sabe como tornar a leitura mais apetecível, avançando e recuando no tempo para melhor cruzar os acontecimentos. Ao leitor caberá a tarefa de combinar as pontas deixadas soltas e ir percebendo a dimensão interior destas duas mulheres, por força das circunstâncias em lados opostos da barricada. Apresentando Laura como uma mulher de convicções fortes e que resiste, apesar das humilhações e privações a que é sujeita, é sobretudo na figura da agente Leninha e na sua complexa personalidade que a autora se detém, penetrando na sua intimidade e privacidade, levantando o véu das falsas aparências e revelando o pulsante estigma do mal sempre pronto a manifestar-se.

Debaixo da pele deste livro, perceberá o leitor o dedo apontado àqueles que reabilitaram parcialmente a PIDE, aos tribunais que julgaram com indulgência escandalosa as atrocidades cometidas, àqueles que atribuíram pensões de reforma aos pides e a quem contribuiu, directa ou indirectamente, para que os membros de uma associação criminosa passassem, burocraticamente, à categoria de vulgares servidores do Estado. Ao mesmo tempo, “As Longas Noites de Caxias” não deixa de encerrar um lamento em nome de quem se sente injustiçado, devolvendo a voz àqueles cuja estatura moral e cívica exige que não sejam esquecidos. Numa altura em que vemos ser chumbada pelo executivo camarário a iniciativa do escritor Pedro Vieira, pedindo que o nome de João Arruda, Fernando Gesteiro, Fernando dos Reis e José Barnetto, os quatro jovens mortos pela PIDE no dia 25 de Abril de 1974, fosse dado a uma rua de Lisboa, cingimos ao peito “As Longas Noites de Caxias” e, irmanados no sentido de que a memória nunca se apague, gritamos Liberdade!

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