LIVRO: “As Longas Noites de
Caxias”,
de Ana Cristina Silva
Ed. Planeta Manuscrito, Março de
2019
No rescaldo das eleições para o
Parlamento Europeu, percebo com tristeza o peso da abstenção e
penso o quanto isto é revelador daquilo em que nos vamos tornando.
Independentemente das razões que assistam às pessoas, de esta poder
ser uma forma de manifestar desagrado ou desencanto perante a
política e os políticos, o que me parece estar cada vez mais em
causa é a questão da memória enquanto vinco identitário da nossa
história colectiva. Quanto deste alheamento é devido ao facto de
termos cada vez mais dificuldade em lembrar o quanto devemos àqueles
que deram tudo de si – inclusive a própria vida – para que
escolher em liberdade pudesse ser hoje um direito de todos? Em seu
nome, em nome da sua memória, votar é, mais do que um direito, um
dever de consciência. E aos deveres de consciência não temos como
fugir!
É sobretudo por isto que o mais
recente romance da escritora Ana Cristina Silva é tão importante,
porquanto nos recorda que a História não deve ser negada nem
esquecida, avivando uma memória que se vai esboroando, ao mesmo
tempo que nos devolve histórias dum período triste, sinistro, que
alguns insistem em branquear. Fazendo incidir a sua atenção em
“duas mulheres que ficaram na história da PIDE”, como podemos
ler na capa do livro, “As Longas Noites de Caxias” é a história
de todas as mulheres e de todos os homens que foram humilhados e
isolados, sofreram a privação do sono, os espancamentos, a
“estátua”, os insultos e as chantagens e que, como consequência
imediata da tortura a que foram sujeitos, se viram acometidos de
alucinações e delírio, perdas de conhecimento, ansiedade, insónia
e tentativa de suicídio. Mas também daquelas figuras sinistras que,
pretendendo justificar o injustificável, perseguiram , torturaram e
mataram.
Os méritos de “As Longas Noites de
Caxias”, porém, não se esgotam neste trazer à superfície os
lugares, os nomes e os acontecimentos que marcaram um tempo que
importa lembrar. Ana Cristina Silva sabe como tornar a leitura mais
apetecível, avançando e recuando no tempo para melhor cruzar os
acontecimentos. Ao leitor caberá a tarefa de combinar as pontas
deixadas soltas e ir percebendo a dimensão interior destas duas
mulheres, por força das circunstâncias em lados opostos da
barricada. Apresentando Laura como uma mulher de convicções fortes
e que resiste, apesar das humilhações e privações a que é
sujeita, é sobretudo na figura da agente Leninha e na sua complexa
personalidade que a autora se detém, penetrando na sua intimidade e
privacidade, levantando o véu das falsas aparências e revelando o
pulsante estigma do mal sempre pronto a manifestar-se.
Debaixo da pele deste livro,
perceberá o leitor o dedo apontado àqueles que reabilitaram
parcialmente a PIDE, aos tribunais que julgaram com indulgência
escandalosa as atrocidades cometidas, àqueles que atribuíram pensões
de reforma aos pides e a quem contribuiu, directa ou indirectamente,
para que os membros de uma associação criminosa passassem,
burocraticamente, à categoria de vulgares servidores do Estado. Ao
mesmo tempo, “As Longas Noites de Caxias” não deixa de encerrar
um lamento em nome de quem se sente injustiçado, devolvendo a voz
àqueles cuja estatura moral e cívica exige que não sejam
esquecidos. Numa altura em que vemos ser chumbada pelo executivo
camarário a iniciativa do escritor Pedro Vieira, pedindo que o nome
de João Arruda, Fernando Gesteiro, Fernando dos Reis e José
Barnetto, os quatro jovens mortos pela PIDE no dia 25 de Abril de
1974, fosse dado a uma rua de Lisboa, cingimos ao peito “As Longas
Noites de Caxias” e, irmanados no sentido de que a memória nunca
se apague, gritamos Liberdade!
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