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terça-feira, 27 de novembro de 2018

TEATRO: "Veneno"




TEATRO: “Veneno”,
de Cláudia Lucas Chéu
Direcção | Albano Jerónimo
Assistente de encenação | Cláudia Lucas Chéu
Concepção plástica | António MV
Interpretação | Albano Jerónimo, Luís Puto
Participação especial | Leonor Devlin
Voz off | Francisca van Zeller
Produção | teatronacional21
Centro de Artes de Ovar
23 Nov 2018 | sex | 22:00


Até seria cómico se não fosse tão terrivelmente trágico. “Veneno”, peça escrita por Cláudia Lucas Chéu em 2015 e levada agora à cena num quase monólogo dirigido e interpretado por Albano Jerónimo – Luis Puto tem duas ou três intervenções esporádicas em palco -, é toda ela um olhar impiedoso e cáustico sobre uma sociedade fracassada, onde a intolerância, a discriminação, a prepotência e a violência duma estreita minoria que detém o poder se reflecte, de forma inclemente e cruel, na vida dos mais fracos e vulneráveis. Agitar consciências e obrigá-las a mergulhar numa estrutura social profundamente abalada e em completa desagregação, no interior do próprio indivíduo como na instituição família ou de forma ainda mais lata, foi o objectivo de uma hora e meia de excelente teatro apresentado na noite da passada sexta feira, para uma mancha de público que quase preencheu a sala do Centro de Artes de Ovar.

O início da peça é revelador a todos os títulos: Uma “jovem”, coleante e produzida, liga o palco e a plateia em frenéticos passos de dança e gestos provocantes. Estamos no Portugal pimba, caucionado desde logo pelos espectadores que não cessam de bater palmas a compasso e de, nalguns casos, juntar ao riso alarve os piropos a (des)propósito. É nesta particular “geografia” que se insere o protagonista desta peça, um homem de meia idade que acaba de perder o emprego e se percebe perdido de si próprio. Estirado no sofá da sua sala, o álcool solta-lhe a língua e estimula o palavrão fácil. Berra com os filhos, amaldiçoa a mulher e o brasileiro com quem ela fugiu, insulta o patrão. Desfeitos que estão os laços sociais, morais, afectivos e emocionais que o vinculavam ao “status”, uma vida vazia de tudo desfila agora na primeira pessoa ante o olhar atónito do espectador. O discurso sobe de tom, as revelações são chocantes, o desfecho adivinha-se.

Não descurando o mérito de Cláudia Lucas Chéu no desenvolvimento duma narrativa crua e implacável, com tanto de intenso como de actual, é para Albano Jerónimo que vai uma enorme ovação pela forma como encarna a personagem principal. Metamorfoseando-se na figura dum homem desequilibrado e doente, que se refugia na bebida para escapar de si próprio e dos seus fantasmas, ele é o vínculo vivo entre o texto, as directivas do encenador (no caso o próprio actor) e o olhar e sentir do público. À sua capacidade interpretativa se deve a forma como a peça se derrama sobre o espectador, desarmando-o, primeiro, para de seguida o arrasar com uma sequência precisa e inclemente de murros no estômago. Visceral, abjecta, violenta, intensa, obscena, corrosiva, a peça é todo um desdobrar de emoções que nos confrontam com o nosso próprio eu e nos apontam o dedo face àquilo em que nos tornámos. Um nó na garganta e um rosto amargo e fechado são os primeiros sintomas dum “Veneno” que alastra nas veias e corrói a alma.

[Foto: José Caldeira / descla.pt]

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